segunda-feira, 28 de maio de 2018

NÃO SE LÊ LITERATURA CANÔNICA SEM TIRAR PESO DE DÍVIDA HISTÓRICA


Há um chamado cânone literário. Ele é um homem velho, barbado, com cara do que chamam sabedoria, encostado num canto, à espreita de tudo; onisciente. É quase a imagem do velho deus. Perto dele, bem mais para a lateral das luzes, ali na esquina, com os olhos bem abertos num movimento de terror com todo o passado visto, mas visionando um futuro possível - por isso não cerra as pálpebras, mantém-as abertas a cada instante -, está ela, a literatura da dívida histórica.

Demorei um bocado de tempo após, tendo terminado o ensino médio, descobrir isso que se chama faculdade. Filha de mãe e pai que estudaram até o colegial e fundamental, respectivamente, e família como um todo (tias e tios) também apartada/os desta realidade, finalizei ensino médio e comecei a trabalhar pois era esse "o caminho natural da vida, minha filha".
Pensando melhor sobre isso hoje, me parece que naquele tempo, na casa em que eu vivia, sonhar outras possibilidades não existiam pois não havia referência de outras possibilidades. O caminho era o já praticado por toda/os dali, na sucessão familiar ancestral.
Anos depois, em algum momento - já com 23 anos e tendo passado por trabalhos de atendente de vídeo-locadora, pesquisadora do metrô e operadora de telemarketing - soube do ProUni, com "bolsas para pessoas de baixa renda cursar universidade sem pagar" e achei que poderia ser interessante. Me inscrevi, "deu certo" e assim estudei Letras. Até hoje me irrito quando eu digo que estudei Letras e as pessoas me perguntam: Na USP? Que raios a colonização fez com elas que a referência de formação nesta cidade de alguém que tem referências literárias (eu) e, também, escreve (eu), só pode ter feito USP?
Salto temporal: lá estou eu terminando o bacharelado em Letras. Olho para os lados e me pergunto: O que eu faço com tudo isso que sei? Era como um quadrinho de Quino, em que um velhinho está numa poltrona, pequenino, cabisbaixo, numa biblioteca imensa-imensa, e ele se pergunta: bom, e agora que sei tanto?
Eram muitas informações rodando a cabeça: semióticas, linguísticas, latins, roma antiga, gramáticas, novas ortografias etc., e distintas literaturas (esta o principal motivo de eu ter iniciado tal curso: literatura. A ideia de que poderia conhecer mais e mais autores me fascinava).
Ler havia sido descoberta que me acompanhava desde a adolescência. Não sei dizer ao certo como aconteceu d'eu começar a frequentar a biblioteca do bairro em que nasci e cresci, Penha, zona leste de São Paulo, mas me lembro exato de um cartaz enorme colado na parede da biblioteca, citando a revista Época e com o título "Os romances que ninguém deve morrer sem ler", e lá listados 55 títulos da literatura mundial. Ao lado uma prateleira com vários livros, cada qual com uma etiqueta colada na lombada com essa frase.
Devo ter achado aquilo muito importante - afinal, era uma revista dedicando espaço para isso e toda uma prateleira da biblioteca disponível para tais livros que me pareciam muito necessários e essenciais para a vida. Acho que também a sentença “morrer sem ler” deve ter me impactado de tal modo que comecei a listar todos os títulos em um caderno, escrevendo à mão, com a ideia de ir ticando cada um da lista após ter lido.
Anos depois - coisa recente -, pesquisando na internet, descobri ser esta matéria de dezembro de 2000, ou seja, tinha eu 16 anos. Uma jovenzinha no 2º ano do colegial, que já fazia teatro e tentava se entender no mundo.
Comecei a ler aos montes os livros da lista. E ia ticando feliz no caderno escrito à mão os títulos já lidos. Me nutri destes enredos, destas ideias contidas nos livros, dessa construção de mundo e referências que muita/os dizem ser universais.
Faulkner encheu-me de fúria agonizante, Henry James torneou-me em parafusos, Balzac me apresentou amores burgueses, Stendhal manchou de rubro-negro a nobreza até então me apresentada como topo devocional, James Joyce me fez acreditar num dia único de muitas possibilidades, Flaubert me apresentou o que era um romance do realismo, Dostoiévski atravessou possesso castigando todo meu ser que se deslumbrou ao encontrar a edição papel bíblia da Nova Aguilar completa na prateleira da biblioteca – quantas noites entregue aos nomes russos e suas divagações filosóficas…, Conrad em trevas me mostrou metaliteratura, Tolstói cortou dogmas cristãos intrinsecamente arraigados no peito, Kafka processou todo um mundo além de uma vida controlável, Proust me mostrou um tempo aristocrático que eu nunca viria a conhecer pessoalmente, Camus empesteou-me absurdamente, Gide mostrou um lado além do santíssimo Vaticano.
Eram estes alguns dos autores e livros da lista canônica de 55 títulos. Todos compostos, fecundados de ideias europeias embutidas em minha formação, ideias de um colonialismo branco, muitos deles de uma perspectiva de classe que não a minha, personagens de vivências outras, um inebriamento de uma vida vivida que não condizia em nada com minha realidade, com a nossa realidade: sujeitos latino-americanos e outras tantas interseccionalidades. 
Hoje, ainda pensando, mais ainda reparo que desta lista enorme, somente três são mulheres. E nem parei para contar quantos são negros, não-heterossexuais etc.
Na faculdade de Letras não foi muito diferente. Eram quatro os estudos literários: Brasileira, Portuguesa, Inglesa (com um pouco da norte-americana) e Africana de Língua Portuguesa. Destas, novamente os chamados “grandes autores” e o estudo cronológico dos movimentos literários. Aqui uma certa aproximação linguística, no entanto ainda dentro dos “elegidos”, dos “escolhidos” pela crítica para figurarem a historiografia literária nacional.
Crescer construindo um pensamento crítico em relação aos movimentos do mundo e buscando perifericamente os encontros e espaços de militância e desconstrução dos padrões  impostos foi abrir-me para um mundo real, um mundo em que eu me identificava, que dialogava com minha história, um mundo existente totalmente apartado da literatura apresentada desde o colégio, invisibilizado nas escolhas do que mostrar, ensinar, noticiar, historicizar.
Que bom e importante foi ter acesso à biblioteca, à universidade - quesitos de um lugar que me põe privilegiada em minha trajetória - mas quais foram esses conteúdos que me formaram?
Pesquisar, ler e estudar a literatura não canônica (para usar um conceito aí de um dos críticos literários que, inclusive, assina a lista da revista Época) é sim novamente escrever com dureza à contrapelo da história. Hoje, cada vez que descubro uma nova autora que não consta em minha lista revista Época, é com olhos cheios e atenção sedenta que vou ao encontro de suas palavras. Sobretudo porque muitas dessas autoras são parceiras que tenho o prazer de encontrar pessoalmente no rolê, de trombar no sarau, de ouvir seus escritos de sua própria boca. De vê-las, vivas: mulheres vivas!
E com esta mesma gana é que escrevo com mais liberdade meus poemas e afins, por acreditar fazer uso das palavras como dissidência a tudo que está aí posto e enferrujado; escrever não assombrada pelo fantasma da qualidade literária que me estancava e me fazia descrer de todas minhas criações.
Contínuo exercício de esvaziar o copo cheio de colonialismos literários para abrir espaço para enchê-lo com novas descobertas, reaprender a ler para além das habilidades de escrita e inovações linguísticas. D E S A P R E N D E R. Desaprender tudo que foi posto como modelo, como padrão, como de valor.
Contudo, fato é que até hoje tenho a lista d’"Os romances que ninguém deve morrer sem ler" escrita à caneta, me acompanhando ainda na esperança de ticar todos os títulos. Só que o tempo urge, e há tantas mulheres indígenas, negras, lésbicas, e outras dissidências para se ler que os canônicos da lista viraram passado fechado no caderno amarelado pelo tempo.
Reivindicamos sermos literatura; que é o que já somos. Reivindicamos sermos literatura visível, difundida, acessível nas escolas, bibliotecas. Termos nossas narrativas presentes. Nossos sentidos valorizados, nossas vivências consideradas.
Aí então se farão novas listas revistas Época de modo que a gente sim se reconheça. Que a gente sim se reconheça não por figurar a revista Época (que a/os nossa/os nem a leem), mas que a gente se reconheça é pela textura da obra, pelo peso de uma dívida histórica.


(obs. este texto foi anteriormente escrito para o saite Periferia Invisível, em 09/2015; mas senti que merecia uma atualização, resultando em texto bastante distinto do anterior)

*se ficou curiosa/o para saber os títulso da matéria da revista Época, clique aqui.