terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

O QUE ME ESCAPA


Eu não sei o que de mim me escapa.
Eu, que acredito em tudo.
Eu, que escovo os dentes antes de dormir.
Eu, que frequentei a catequese.
Eu, que votei no referendo passado.
Eu, que escrevi cartas de amor.
Eu, que enviei cartas de amor.
Eu, que não sei o que é o amor.

Correndo pelo mundo no desespero da busca,
Sempre aquela velha melancolia que bate, bate,
pulsa firme pelos troncos que não se limitam aos arbustos.

São troncos meus, tu reparastes?
Não são as velhas árvores da floresta,
são partes de meu esqueleto ainda juvenil que um dia o desgaste o tombará na alcova.

Isso tudo me escapa,
despossui-me,
faz de mim sujeito-EU
- o elo vago de uma tarde de encontro com si mesma.
A vida é.
Não termina.
É muito, eu sei, mas quem disse que não sou simpática aos excessos?

E então, quando acabar, eis que novamente o que é de mim me escapa.
Não posso me segurar por inteira.

Pois vá.
Parta.

Mas não demore pois a vida, sim, agora sei, esta também se finda.



LASCAS E SOLAS


De repente, como quem acorda em um jazigo, assustadoramente brotou na sola de meus pés uma lasca de amor.
Doía. Eu não queria.
Era quase que impossível continuar a caminhar pelas trilhas deste mundo com aquela lasca marcando sua presença a cada toque de meu pé esquerdo pelos diferentes tipos de solo.
A primeira atitude imediata foi cutucar com uma agulha, de modo com que a lasca escapulisse para fora.
Não deu outra: como quem se encolhe com dedos coceguentos na barriga, aquela farpa de madeira se meteu mais para dentro, quase que se acobertando com a fina camada de pele que a envolvia.
Sem muito o que fazer, fui convivendo com aquilo.
Aos poucos, a sensação de incômodo foi deixando de aperceber-se e eu quase que não a notava. Eram dias atrás de horas seguidas de cronos de aprendizagem da convivência com o desconhecido.
Deixei-o instalar-se naquela que era a minha sola e o que era uma angústia inicial, tornou-se, ao final, um nem-aí despercebido.
Sorrateiramente aprendi a lidar com o amor e ele, aquietado em seu buraco, manteve-se ali, tranquilo, no mais intricado de minha pele a lembrar-me de sua condição atávica: era ele para sempre, uma fagulha de eternidade, até que, por fim, a morte viesse e secasse o fio de sangue que corria por minha sola.



O TEMPO E A CALHA

"O tempo se esvai pelos canos que desembocam em deságuas.
Um dia calha da calha estar entupida e o tempo fica – a conta-gotas homeopáticas.
Líquid'estanque no quedar abismo;

escorrer lânguido pelo velho piso”


VISITA NOTURNA [A GATA]

Habita uma gata que me visita todas as noites.
Abro a porta de casa, ela nada me diz.
Por vezes, nem sequer esfrega seu corpo peludo em minhas pernas.
Afia as unhas no sofá e segue a deitar-se em minha cama.

Mas ali... naquele estrado de minha intimidade em que transpiro e sonho paisagens quiméricas, sei que ela se depara com o mais profundo de mim mesma.

E, por isso, secretamente, ela descobre que me ama.

Contudo... dissimula.

Nao cabem às gatas revelarem seus sentimentos



SAUDAÇÃO À GLAUBER ROCHA (10/02/2013)




Pensamento de quem recentemente assistiu ao documentario Glauber, o filme, labirinto do Brasil (dirigido por Silvio Tendler, 2003):

''Ainda almejamos a nova utopia, Glauber
Os dados continuam rolando.
É um novo tempo de espera:
tempo morno - tempo morto
Tu diras que nao lutamos mais como antes e muito/as companheiro/as cederam às garras do imperialismo.
É verdade, eu sei/sabemos, é verdade, cineasta
A terra segue em transe fundindo Deus e o Diabo.
Quem contabiliza sua idade?
Quem voltou para soprar os ventos do leste?
Na encruzilhada, em barravento, tu apontas o caminho:
a trilha do cinema perigoso, divino, maravilhoso.
O sol, este santo guerreiro, ainda cisma em se erguer nesta antiga terra de dragões da maldade.

Mas insistimos, caro Rocha, persistimos.
E que falta tu nos faz nestes tempos do pouco.



quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

PELOS PELOS (ENSAIO SOBRE OS FIOS)

São pelos pelos que descobrimos a verdadeira natureza de um ser.
Pelo modo como um pelo se afunila no peito desnudo,
pelo jeito com que se assanha ao assombro de uma língua,
pela forma pelo qual se enrosca na dobrinha da orelha.

Pelo pentelho na subida do joelho.
-Ei, fiozinho atrevido, por onde sobes pelo meu corpo?
(ah, se ele soubesse como eu me arrepio quando o vento bate ao pé do ouvido)

Mas, olhe, o pelo subiu pelos seios,
encurvou-se nas redomas,
estancou na curva leste,
acelerou à cucaracha,
prosseguiu sinal vermelho,
fez um vinco bajo à destra,
conservou-se à cor de jambo,
atingiu o belo pomo,
roçou o biquinho assanhado,
e num baque abocanhou-o.

E pelas bordas se arrepia ao calcanhar,
e pelas beiras se ajeita à beira-mar,
pelas pelancas se intimida ao giletar,
pelas pelotas se enrodilha a girar,
e pelas ancas se despede ao se corar.

Lá vai ele, pelo sacana, ralo abaixo, se indagando:
-Mas quem foi que inventou a tal da depilação?