quinta-feira, 9 de outubro de 2014

NARRATIVAS: LUTA À MÃO ARMADA

Naquele dia ninguém escreveu ao coronel
Nem no dia seguinte,
nem no outro,
nem mais outro,
nem outro não.

Passaram-se semanas
e o coronel
cartas não não recebia.

Ressabiado,
aguardou por mais um mês
Afinal
já tinha tempos que a cidade percebia
que algo estranho por aquelas bandas acontecia.

Nada.

Nenhuma carta foi escrita, embalada, selada, postada e enviada à caixa de correspondências da grande casa do coronel.

O coronel...
O coronel era aquela figura autoritária, mandante, prepotente,
rigorosa no comando da cidade, como pensam estes que lhe convém.
Mão firme, forte,
não deixava ninguém à esquerda passar batido.

O coronel...
O coronel era aquele homem dono de léguas e mais léguas cidadezinha afora.
Heranças, vixe, que não cabia mais no descontentamento das gentes que por lá andavam.
Sobrenome passado homem pra homem não tem erro não
- pretinha prenha cá não ganha nada -
-Tá querendo o que aqui, pichezinho? Vá já pros fundos, diacho.

Mas...
por que não nunca-mais,
ninguém naquelas tardes,
no ócio daquelas bandas,
cartas ao coronel não remetiam?

O guri carteiro passou,
a velhinha empregada ainda fez menção de chamá-lo:
-Ei, rapaz, nada não para o coronel hoje?
-Nada. Nada não, foi enfático o pequeno assanhado.

-Eita, o que houve, minhavirgem?

Mas naquele momento ela já se lembrava.
Sorriu com firmeza como há tempos não se via naquele rosto macerado.
“E não é que os bichos conseguiram mesmo?”
ainda pensou antes que avistasse a marcha que descia estradinha abaixo.

Lá estavam mulheres surradas,
homens de palha,
crianças poeiras.
A velhice aos trinta anos descalça.

Todas rasgando em migalhas postais viajeiros,
Todos triturando com os dentes envelopes distantes.

Ouviu foi palavras firmes na boca do povo:
“Coronel. Acabou procê.
A partir de hoje não mais cartas,
não mais palavras.
Curte aí a baderna,
pois depois só terá é silêncio.
O último que ouvirá serão estampidos secos dos fuzis atingindo a parede.
A parede respingo de sangue depois das balas atravessarem seu peito oco desmantelado”.

Pois foi gritarem tal sete-léguas
e já saía em tamancas,
arrastado por meninos apelidos,
o coronel sobrenome,
que até então não sabia,
que quem não herda heranças de sangue (dos outros),
herda o próprio sangue das lutas,
de ancestrais guerrilheiros.




quarta-feira, 1 de outubro de 2014

MIRANDO JOANA

A primeira vez que vi Joana
Não, ela não percebeu que eu a espiava.
Deitou suas palmas no arrendondar dos olhos
e em leves suspiros girava os pulsos,
esfregando-os em pêndulo.

A primeira vez que vi Joana sozinha
Seu corpo magro não me deixava identificar-me com aquela falta de curvas.
Rolou a mão até a entrada da bolsa larga
e tomou para si como quem recusa afetos
uma agenda surrada.

A primeira vez que vi Joana sozinha sentada
 Saiu de seu bolso jeans um celular que,
em seguida,
numerou dígitos firmes.

A primeira vez que vi Joana sozinha sentada corpo surrado
Sua débil voz ao telefone ensaiava um pedido confuso,
Inaudível aos meus ouvidos metros distantes.

A primeira vez que vi Joana
- Manhã lenta
Viela acordada
Crianças nas escolas -
foi também a vez início
O primeiro baque,
O ver mim mesma na outra alguém.

Se antes eu não somente vizinha fosse
Os gritos constantes ouvidos,
Os estampidos secos dos punhos,
Nada não talvez pudesse ter sentido Joana

Porque eu teria sabido agir
Sem medo
Valente
Tal qual mulher que também sou
E que nas horas inertes já golpes idem recebi

Calei parada
- A figura do grão homem machado empunhando os golpes -

No entanto,
do silêncio soube eu interromper a porta fechada
- primeiro momento de Joana a me olhar -
Paspalha, indefesa, leite fervendo no fogãozinho ao canto,
na pia ainda o copo americano sujo deixado por aquele ele.

Estreitou-se ela em meu corpo com o que lhe restava de garra daqueles braços finos,
Aconchegou-se lenta pedindo proteção laroiê.

Nos vimos mulheres
encontrando um lugar comum
- dor, semente, partilha, regaço, ventre -
Ayabás reerguendo pra vida
Ponteando florins,
Pareando as flechas,
Acertando as miras.