quarta-feira, 7 de agosto de 2013

ANARQUIA E FRAGMENTAÇÃO DA LINGUAGEM: ECOAMENTOS DE MALLARMÉ NA POESIA DE WALY SALOMÃO

[por Bárbara Esmenia]


"A memória é uma ilha de edição"
Waly Salomão


Na década de 1970, arrebatada/os pelas transformações culturais e políticas, a/os nova/os artistas brasileira/os, emergida/os da inovadora década de 1960, criadora/es da arte surgida do pós-guerra - por mais espectadora/es que fomos de tal fenômeno - e da ditadura civil-militar vigente, em uma ânsia e certo mal-estar da vida desiludida desta segunda metade do século XX, debatem-se na escrita entre a criação sucessora do Modernismo, de todas as vanguardas europeias que já haviam fragmentado a linguagem, desperdiçada qualquer lógica coerente que não fosse o somente expressar-se, que abolisse o princípio fundamental do dadaísmo de que "o pensamento nasce na boca". Quando pensa-se em falar, já foi. Verbalizou-se. Por mais incompreensível que seja.

Em termos filosóficos, aclamava-se o pensamentos, sobretudo, de Jean-Paul Sartre e seu Existencialismo, na justificativa do ser em sua condição libertária e subjetiva, sendo que a existência, como definiu o próprio Sartre, "precede a essência".

Nessa rabeira, bebendo influenciadoramente, surge o teatro pós-dramático europeu, sendo mais representativo o que se denominou "teatro do absurdo", termo dado pelo crítico Martin Esslin em livro de 1962, a fim de reunir dramaturgos de um mesmo período que vinham abolindo a coerência lógica e tradicional da arte dramática, dando espaço ao fluxo de consciência inaugurado por James Joyce, reduzindo a linguagem ao simples tartamudear, isento de sentidos.

É significativo também o ensaio seminal de Albert Camus, de 1942, intitulado O mito de Sísifo: ensaio sobre o abusrdo, em que o filósofo apresenta a condição humana como taxada à repetição de gestos que não levam a resultado algum, tendendo a um sentimento enganador de realização que não se completa enquanto justificativa da existência.

Anterior a toda essa explosão criativa da segunda metade do século XX encontramos no final do século XIX a/os predecessora/es deste teatro do absurdo que teve, certamente, como seu maior representante o irlandês Samuel Beckett, com o marco de 1952, Esperando Godot. Os franceses Alfred Jarry e Jean Cocteau já prenunciavam certa quebra da curva dramática, antes mesmo do que fez o dadaísmo em seu Cabaré Voltaire, o surrealismo em suas soirées ou mesmo o expressionismo de George Kaiser e sua trilogia Gás.

Jarry, principalmente, é o que cria em 1896 - data importante a ser guardada posto que será retomada ao chegarmos em Mallarmé -, a peça Ubu rei. Desinteressado de uma representação com fé na verossimilhança, o que Jarry nos traz em cena é a crueza de uma montagem destituída de cenário, aos moldes do minimalismo que se refletirá na linguagem. Apresenta-se um ator montado em um cabo de vassoura que representa toda a tropa, um ator que porta um cartaz representando todo o regimento, as falas, em confluência com a estética, também não se propõem ao 'contar de uma história'. Máscaras são inclusas no objetivo de despersonalizar qualquer identificação por parte do público.

Apesar destes procedimentos pressuporem uma aproximação com o que será o teatro de forma épica de Brecht, ao menos na encenação, o que se propõe é completamente o inverso, já que, enquanto o dramaturgo alemão necessita do distanciamento a fim de se gerar a reflexão crítica, neste teatro propõe-se mais o rompimento puro e simples das formas pré-fixadas, sem preocupação com a consciência social

Retornando à data de 1896, e buscando justificativas a toda esta introdução teatral absurda, chegamos ao cerne desta escrita.

E por que 1896, ano de criação de Ubu rei?

Porque é justamente no ano seguinte, 1897, que, também na França, o poeta Stéphane Mallarmé, publicará na revista Cosmópolis, o poema Un coup de dés jamais n'abolira le hasard (Um lance de dados jamais abolirá o acaso.

O que faz Mallarmé com a forma da poesia, fragmentando suas partes, lançando-as no papel como quem monta um diagrama, atestando a crise do verbo e da linguagem, é certamente a defesa mais audaciosa de um poeta que está "em greve perante a sociedade" (Campos, 2010, p. 27)

Mallarmé recorre ao fazer poético como temática principal de sua criação, envolvendo a preocupação com o modo de distribuir as palavras no papel. Papel este como objeto-suporte da poesia, em caráter sine qua non para que a arte poética exista, possa expressar-se.

Conforme atesta Haroldo de Campos (2010, p. 26), Mallarmé recorre à "denúncia da falácia e das limitações da linguagem discursiva para anunciar, no Lance de dados, um novo campo de relações e possibilidades do uso da linguagem, convergindo a experiência da múscia e da pintura e os modernos meios de comunicação, do 'mosaico do jornal' ao cinema".

Ao buscar uma aproximação do poeta francês com a/os poetas brasileira/os por conta de certa influência significativa, nada mais justo pensar estarem nossa/os poetas inserida/os na era do audiovisual, em que, após o surgimento do cinema, do qual Mallarmé vê nascer quase no mesmo ano da publicação de seu poema seminal, é impossível dissociar palavra/linguagem de imagem; uma é recorrente à outra pois o século XX foi marcado, sobretudo, por esta eclosão da chamada sétima arte, a arte cinematográfica.

Década de 1970. Brasil. Estamos no auge do Cinema Novo. Glauber Rocha na década de 1960 criara seus melhores filmes, já ocorrera os festivais de música, a Tropicália já causara em seus melhores momentos a agitação da cena nacional, o Teatro de Arena e o CPC da UNE transformaram a cena teatral, a ditadura civil-militar fechara ainda mais o cerco após a barbárie do AI-5, de 1968, e um multiartista, baiano por nascimento e excelência, lança um livro um tanto quanto inovador em sua estrutura que mistura poesia, prosa, relatos, ou mesmo todos juntos sem preocupação com as classificações literárias, escrito dentro das celas do Carandiru, em uma estadia na qual foi o autor levado por porte mínimo de erva. É este sujeito a mistura sírio-sertaneja chamada Waly Salomão, que lançou em 1972, assinando como Waly Sailormoon, seu Me segura qu'eu vou dar um troço.

Marco da poesia experimental, o livro destaca-se por sua escrita fragmentada, totalmente anárquica e iconoclasta, moldado por relances e mosaicos de palavras que, por vezes, pode nos parecer um simples jogar aleatório de frases, letras e sonoridades, lembrando mesmo o modo de criação dadaísta, na junção de palavras ao léu recortadas de jornais e revistas e reunidas aleatoriamente.

O que a França simbolista da virada do século XIX para o XX pode significar a um poeta rebelde, reivindicador de uma cultura autenticamente nacional parada nas décadas de 1960 e 1970?

Pois é justamente graças a esta inovação poética proposta por Mallarmé que foi possível o desabrochar dos movimentos de vanguarda nacionais, desde o Modernismo até a contemporaneidade. Senão diretamente, enquanto influência reconhecida, percebe-se com sutileza estas pinceladas de suas características.

E em Waly, esta confluência é observada, principalmente na forma adotada para dispor seus poemas nas páginas. Em trecho de Fêmeo-fêmea, a utilização do espaço em branco da página é esquematizada do seguinte modo:

FÊMEO-FÊMEA

Alhures,
                todo me vibro em tudo

Aqui,
                   poderei decalcar o
                                                          Q
                                                                               é fugaz?

Racontar
              rapsodiar
                                te me apreender

Prender e soltar numa clareira-narrativa

(Picada aberta na floresta amorfa)

E comandar:
                       -PASSE, carne colada ao envelope
                          Da placenta
                       -PASSE, fragmento encharcado nos
                          Líquidos placentários

Como
           te
                 me
                        desprender?

Como???


Do mesmo modo, Mallarmé inicia a cadência de seu poema apropriando-se do espaço dispositivo da página a ser disposta as palavras - quando não somente sílabas ou letras soltas.


RIEN

                    de la mémorable crise
                                ou se fût
                                         l'évènement
accompli en vue de tout résultat nul
                                                      humain
                                    N'AURA EU LIEU
                                  une élévation ordinaire verse l'absence
                                                                               QUE LE LIEU
Inférieur clapotis quelconque comme pour disperser l'acte vide
                                        abruptement qui sinon
                                     par son mensonge
                                                    eût fondé
                                               la perdition
dans ces parages
                             du vague
                                                en quoi toute réalité se dissout


[tradução: NADA / da memorável crise / ou se houvesse / o evento / cumprido em vista de todo resultado nulo / humano / TERÁ TIDO LUGAR / uma elevação ordinária verte a ausência / SENÃO O LUGAR / inferior marulho qualquer como para dispersar o ato vazio / abruptamente que senão / por sua mentira / teria fundado / a perdição / nessas paragens / do vago / onde toda realidade se dissolve]


Estes dois poemas podem ser vistos como "poemas-estruturas", partindo do pensamento organizacional dos poetas que decidem primordialmente a posição das linhas tipográficas na página, escolhe com rigor os espaços a serem deixados em branco que encerrarão significado decisivo ao visualizar-se o poema.

A montagem ideogramática idealizada por Mallarmé ecoa substantivamente na proposição estética exercida por Salomão, tornando-se "um estilhaço arrancado à crônica de sigismundo malatesta, um aforismo extraído dos analectos de confúcio, excertos da correspondência de jefferson ou de john adams, reminiscências pessoais do poeta como as de seu aprisionamento no campo de pisa, interagem polarizados em cadeias de relações, desenhado o organismo geral do poema", conforme nos atesta Haroldo de Campos, porém desta vez referindo-se a outro grande influenciável por Mallarmé, Ezra Pound. 

O ideograma é proposto como síntese do discurso verborrágico, no tocante a que se refere ao minimalismo da afetação verbal em preferência à simbologia, em decorrente sincretismo da poesia com a arte visual. Já não há necessidade do uso da pontuação. Despreza-se a gramática coerente, a gramática moldada nos rigores acadêmicos, uma vez que é o espaço gráfico a pontuação necessária, o elemento 'negativo' de uma versificação estrutural. Para Salomão, nada é sistematizado enquanto criação poética. Coloca ele no papel o que lhe vem à mente, em ato aleatório de fluxo de consciência, deflorar de ideias e exaltação da memória. Tal qual a inovação secular dada pelo poeta francês no final do século XIX.


Bibliografia

CAMPOS, Haroldo et alli. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 2010

MALLARMÉ, Stéphane. A tarde de um fauno e um lance de dados. Lisboa: Relógio d'água, 2001

MALLARMÉ, Stéphane. Brinde fúnebre e outros poemas. Riode Janeiro: 7 Letras, 2007

POUND, Ezra. Cantares. Brasília: Serviço de documentação do ministério da educação e cultura, s.d.

SALOMÃO, Waly. Gigolô de bibelôs. Rio de Janeiro: Rocco, 2008

SALOMÃO, Waly. Me segura qu'eu vou dar um troço. Rio De Janeiro: Aeroplano, 2003