sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

crédito: Aline Oliveira

eles se beijam

numa esquina meia-luz no Arouche
há dedos colados nas nádegas

eles não é

homem y mulher
nessa que dizem
ser o correto plural da gramática

são dois os homens mesmo

que encontram possíveis uns beijos
no entre árvores do largo habitado mais homens

num lado outro

travestis conversam à beça
é domingo à noite
elas sabem que o tempo não para

-que bom vivermos em doismiledezessete

você me diz riso reto
-não esqueçamos operação tarântula
te respondo quase seco
-nem operação sapatão
você retruca no ríspido

mas acontece

que nós duas somos mulheres
e do outro lado rua
afoita você esbarra alguns dedos em minha nuca pelada.
o próximo de teus peitos quase de frente aos meus.

olhos farejam prum lado

olhos farejam pro outro

y só encontramos espaço seguro

de nos beijarmos bochechas os rostos.

enquanto se vai transporte o busão

eu te aceno

tal qual amigas que

-também-
somos.






{ ≈ dí¶tic∅ d∆ m∆t∆ ≈ }
¥¥
o tempo
_que cíclico_
arrodeia em bocadinhos
de escutas
y
esperanças
porque sabe que ele
_fincado na história que é_
não acaba que nunca,
sobrando findar
é pra gente-pessoa mesmo;
decompor da matéria,
esgotar dos perrengues.





{ ≈ dí¶tic∅ d∆ m∆t∆ ≈ }
¥
não há memória antiga
que permita esquecimento histórico
no pra sempre
já que
circula circula circula
(na fala)
em tempo-sábio cíclico
y revive
como reminiscência
em tempo presente
mesmo.



{ notas para uma escrita: referências positivadas y construção de novos imaginários }



{ notas para uma escrita:
referências positivadas y construção de novos imaginários }

elaborar uma poética que caiba no inteiro da boca. não nela fechada, hermética, congestionada impenetrante.
mas ela saliva, deslizando entre dedos, gengivas, falanges, escorrendo nos grandes lábios.

elaborar uma poética que me forneça léxicos para dizer que te desejo e/ou que te amo y que não sejam eles os mesmos do qu'escutamos nos padrões da heteronorma.
elaborar uma poética que construa seu tempo - próprio - de te lamber cantos-corpos numa nossa frequência do que podem duas ou mais mulheres tão juntas.

que nada tem a ver com o referencial da tevê, dos pornôs, de tudo que é criado sem ter nós como sujeitas de fala ativa.

elaborar uma poética em que teu cotovelo roçando a quina de meu joelho esquerdo ou meus dentes enroscados no eriçar dos pelos de teu sovaco tenham o peso da mesma semântica de quando você - na tua - se faz liberta sem mim por aí y transita os caminhos y encontros que bem queira. sem que nos corroa o ciúme, a possessão, vigilância, desconfianças.
esses são léxicos do patriarcado.

elaborar uma poética que destrone os formatos, que abale o que está dado, que questione qualquer "as coisas são desse jeito" ou "sempre foi assim".

elaborar uma poética que seja própria da gente mesmo. que configure o que é amor sapatão. quase nada referenciado na história, pouco narrado em registros pros tempos, invisibilizado no que vemos até hoje, cabendo - nós mesmas - construirmos o que é isso.

elaborar uma poética que remonte as sintaxes. que reinvente as palavras. as junções no formato das frases.

elaborar uma poética que gere episteme. y que possamos - ela e nós mesmas - construirmos legado a todas aquelas que depois de nós virão.




Sarau Atômica - Maceió/Alagoas


Y foi realizado o primeiro Sarau Atômica, na parceria Coletiva Atômica y Casa Sede, ambos de/em Maceió, Alagoas.
Na ocasião, muitas falas-mulheres, poesias, escritas, encenações, danças, coragens y afetos.
Pude cruzar um pouquinho mais desse imenso Brasil e lançar mais uma vez meu segundo livro "Tribadismo : mas não só - 13 poemas a la fancha + 17 gritos de Abya Yala" (se você não tem, só pedir!)

Foi bonita a festa!

Agradecer e abraçar as guerreiras que levantaram o rolê: Yolanda Ribeiro, Mirella Pimentel, Tayná Nogueira (Coletiva Corpatômica) Wanderlandia Melo y Natali (Casa Sede).
Y todas presentes!





Tribadismo: mas não só

crédito: Daisy Serena

"Tribadismo, mas não só. que é esse título dado ao meu segundo livro de poemas. que tribadismo é sexo tesoura roça-roça entre mulheres. que mas não só é porque não é apenas sobre com quem se deita, quem se beija, com quem se transa. que tribadismo, mas não só, é que ser sapatã anuncia um estar no mundo em busca des-referenciada do acúmulo que a heteronorma imputou sobre nossas corpas. essa que digo que é na pós-colonização de todo um Abya Yala que nem tinha aqui essas normativas não. que é ser consciente do aparato estatal e também privado a regular nosso compromisso com a gente mesma. que mas não só é porque há que interseccionar sempre o que é essa de ser sapatã; afinal, se é, ainda, indígena, negra, em situação de rua, pobre, favelada, nordestina, que não performa feminilidade, tudo isso são identidades perceptíveis a alterar os graus de violências para com as corpas, para com a gente, para hierarquizar quem morre primeiro, quem sofre mais no caminhar das ruas. estejamos atentas.

é tribadismo sim - e adoro como a gente roça, como a gente ama, como a gente se toca, como a gente fode. mas é também não só".

Esse relato faz parte da aba que a escritores Gabriela Soutello abriu no Instagram para que nós, lésbicas e bissexuais, tenhamos mais um espaço de troca. Para criarmos, juntas, referências.



quarta-feira, 31 de julho de 2019


a gente podia
tá tudo agora envolvida
umas em cima das outras
algumas nos lados
várias embaixo

tantas ao longe observando como é bonito demais
e
como acender essa vela aqui
faz bem pra contemplar
essa cena privilegiada

a gente podia
voltar naquela noite
e contar de verdade
em quantas estávamos
quando
chegaram mais duas
e
perdemos contagem
na memória café da manhã ainda juntas
[alguém disse oito,
mas a gente se lembra
que éramos ímpar]

e quem se importa com números?

a gente podia
voraz
como naquele poema
"não há nada" (nothing),
de Cheryl Clarke
- que foi onde eu descobri
que "comer-lhe o cu"
e
"chupá-la na frente de sua outra amante",
e
"mostrar-lhe o prazer no perigo"
e
"deixá-la ver eu comer minha outra amante"
tinha nada que ver com
monogamia
e
bem podiam ser versos de poesia
e
me fez saber muito mais
de possibilidades
grupais
- e escritas poéticas -
que
aqueles sonetos barrocos aprendidos na escola

a gente podia
seguir assim dia a dia
no desapego mesmo
sem acorrente
sem possessão
sem as merdas todas

só um grupinho amante
que se deseja|gosta|ama|trepa
e
se dá|sente prazer nesse agora

vivas no contemporâneo
...
#tsunamisapatão [um poema por dia de 29/07 a 29/08, Dia Nacional da Visibilidade Lésbica - participe!]
.
[tradução dos versos de Cheryl Clarke, entre aspas, é de Thamires Zabotto]




manual para atravessar esses tempos
1.

ideal seria
- talvez -

a gente tudo se encontrar assim,
numa virada final de semana,
num tanto mulheres presentes
y mergulhar em afetos, em toques, risadas.

ideal seria
- quem sabe -
rejeitar noção normativa
que insistiu macular
nossas corpas
nossas vidas
as origens
os chãos vivos
y as bocas.

ideal seria
- ainda, veja só -
recusar as intrigas
- que é ela tecnologia do capital
excluir conceito inimiga
- que é ela aparato machista
y fazer das amizades
possibilidades do devir erótico
- que não é só sobre sexo não viu.

[ mas se a gente também quiser que seja pode,
é
y
será ]

ideal seria mesmo
cada qual exercer liberdade responsável
y ter regaço para ser acolhida
no regresso pra partilhar uns cuidados

fato é que
seria mesmo-mesmo ideal
cada uma-uminha mulher
na vivência trajetória sua
existência esse mundo
nutrir em corpo de outra
seiva, caroço, fibra, caule, fruto, tronco, semente, raiz, copa, cerne, casca, folha
y ser ela mesma todinha
propulsão coletiva e si só

já que os tempos
favorecem os desânimos
estimulam pras mortes
seremos nós as escolhas vidas
pra não falhar na magia da cura

[com a consciência viva do tempo-histórico-conjuntura-brasileira em que estamos fazendo isso]
#tsunamisapatao [um poema por dia durante os 30 dias que antecedem o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica]







não foi dado espaço ao plexo
para expandir-se além do que dentro.
.
coube à ela
- regente cabeça -
alargar estufa cardíaca,
.
y peles
y ossos
y pelos
.
tornar-se-ando raio pralém superfície,
fincando desde céu hasta solo.
.
resultado:
desaguar chuva en maíz.
.
en feitio protoagrícola:
tempestade-pós-solar-y-raíz.
🍃🌩️




{ do que chamam inferno astral }
.
se é mistério
a gente agarra cada lâmina
que surgida não-d'agora
- no quase trinta-e-cinco -
e acolchoa lado pendente
de um peito esquerdo
pra firmar
seio com seio
.
pois que no pós-trinta-caminho-quarenta
o que se expõe de um corpo vivo
não menos que isso
apresenta-se
em
c o r a g e m
.
nos torna há tantas inteiriças
.
concretiza existir corpo histórico
e se move
- mais que tudo -
sabendo-se de impulsos,
invencionices,
rala-labuta,
folias
y
memórias.



quinta-feira, 18 de julho de 2019


"nunca foi só pelo amor.
.
e sempre que escutava ser amor palavra-apelo para justificar as vivências lgbt+ torcia a cara de tal maneira que qualquer que fosse criancinha a passar e flagrá-la na expressão diria de imediato à mãe que aquela ali comeu e não gostou.
não era só pelo amor.
pois que já tinha comido e tinha gostado num tanto sendo rompante pralém do que tinha vivido até então que cambiar sentir-atração, sentir-desejo, sentir-tesão pelo sentir-amor não cabia em acúmulo o que na soma era não.
e quando escutava que todo mundo deveria respeitar pessoas dissidentes sexuais porque, afinal, é só amor, se lembrava do corpo vibrando à toa, metido em pensamentos com aquela que nem sequer amava. e se lembrava das histórias de orgias que as amigas e ela vez e outra se metiam - que não tinha nada que ver com amor não; nada que ver com esse da caretice, por vezes disfarçada de apego, de controle, possessão.
mas que tinha que ver com amor outro-ângulo (ou só amor mesmo, no profundo léxico significante), coletivizado, reflexo de um tempo buscado, 'inda que nem sempre alcançado não.
.
e pensava se esses que justificam que vivam os corpos lgbt+ pela via do "é só amor", se defende-os também na via do desejo, na via da sacanagem, na via da putaria. nas vias-chave que a heteronorma masculina sempre se fez pertencente na surdina, no privado, mantificada pelo só amor chave cristã casal-dupla para todo o sempre amém.
.
nunca foi só pelo amor.
e se perguntava em silêncio se isso fazia diferença; se com quem-quanta(o)s-como se dorme/transa/fode se faz diferença para o que clamam respeito, para ideal de cuidado, para viver todo mundo sem socos, sem xingos, sem medos. sem corpos violados, interrompidas existências, futuros limados.
.
não.
.
nunca foi só pelo amor não".
.
[notas para um escrita]



sábado, 8 de junho de 2019



não foi para entender o silêncio
que se criaram o cosmos
nem ao menos
gritar entre as galáxias
motivo qualquer para saber-se escutada
.
mas, talvez
nalgum canto
entre a força do que calamos
e a potência do que podemos gritar
haja ainda fôlego
num descomum exaltado
que movimente as vozes
.
que não são sempre palavras
(arrepare)
mas que fazem das vidas
propulsão para seguirem existindo



Pra Queda Heteropatriarcal: Teatro das Oprimidas e Estudos Lesbofeministas



Quando pensei em realizar a oficina Pra Queda Heteropatriarcal: Teatro das Oprimidas e Estudos Lesbofeministas, a ideia era essaqui mesmo: juntar um bonde de sapatãs e mulheres - sobretudo pralém da normativa sexo-afetiva, pralém da heteronormatividade compulsória - ou ao menos com o desejo de investigar isso e questionar enquanto estrutura mesmo, pralém do desejo sexual; e pralém dessa coisaí de amor romântico que é apreço atrelado ao patriarcado estrutural também, na manutenção do poderio sobre outras corpas - bem a cara da colonização isso. Pralém.
.
E, nesse coletivo, investigarmos formas, ritmos, sons, gestos, possibilidades tantas de estudarmos as expectativas y regras sobre nossas corpas y o tanto possível enquanto propulsão libertadora a partir de um pertencimento a essa mesma corpa, essas mesmas nós mesmas. Esse mesmo tanto potente dentro de nós que é força pro motor da queda heteropatriarcal pelo qual nos empenhamos nesses encontros ainda iniciais, ainda recentes, mas que já pululam no tanto em nossas mentes. Construção de novos imaginários.
.
Se Octavia Butler, numa de suas obras nos indica que somos hoje o que nossa/os ancestrais sonharam y, podada/os à guisa de processos escravocratas, somos nós hoje esse antes-futuro tempo sonhado, eis que a gente se encontra numa oficina de teatro das oprimidas para pensar sim a queda heteropatriarcal, para estudá-la, sorrateirá-la, criarmos dinâmicas de destruição.
.
Que nem são novas não, são é antigas mesmo. Sipá foram feitas pelas caçoaimbeguiras quando chegada europeus cá abya yala, sipá foram feitas icamiabas quando enfrentaram y derrubaram espanhóis caracara, sipá lá noutro continente foram feitas quando em ilha lesbos elas se roçavam.
.
Sipá somos nós mesmas, nesse tempo-agora, nesse ciclo práxico-teórico, sonhando os imaginários para os futuros. Sonhando-os y construindo-os, na mesma dinâmica que fizeram as ancestrais. E que sorrimos vivas na foto hoje justo-justinho por elas.
.
Seguimos criando.
Gerando epistemes para tempos à chegança no pós-nós.




{ sobre atos y curas }

dá igual
caminhar ruas | marchar atos
pautando a história
y
rebulir na cama agarrada à corpa de uma mulher que desejo
apertá-la em toda extensão da pele
ajustá-la entre minhas polpas
cercar de saliva os arredores de suas extremidades

se isso for
- y é -
pra cura potencial
pra salvar sanidade mental
pra recompor vigor corporal

dá igual
se pautamos a história pegadas
entre gritos liberdade em cada dedo afundado nas vincas

pois que
: afetos
y curas
y gozos
y risas
y trocas
nós juntas no tempo

retoma forças para
- dia seguinte -
sermos nós a
caminharmos ruas
y
marcharmos atos

curadas
y
vivas



quinta-feira, 30 de maio de 2019


não é - só - sobre pernas abertas prescorrer dos gozos todos deslizando nas peles
não é - só - sobre corpa-viva presente e risonha gargalhante pracolhida toda ela
não é - só - sobre lamber todo o sumo e, insatisfeita, ter gosto para o tanto mais/todas horas
não é - só - sobre foder mulheres e por elas com elas venham elas tantas elas ser idem fodida
não é - só - sobre discurso igualitário amor seres humanos respeito fraternidade direitos
não é - só - sobre receber no peito e encontrar territórios fugas para os desmandos espaços
não é - só - sobre sexualidades libertas vivas fugazes ardentes potencializadas existências
.
e se, no não sendo,
apofaticamente se apresenta:
é no mais é-além
é dispositivo político anti-compulsoriedade-normativa
isso de ser sapatã bollera lesbiana sapatão tortillera lechuga pata torta cachapera leñadora camionera lencha
.
é combate tudo-isso-aí-posto-pra-minar-existências
nutrida em forças raízes de nós abyayala
- cá tão antes de tudo que é d'europas genocidizando ancestrais -
de tantas çacoaimbeguiras tupinambás entre elas, y ê salve elas, y ê vivam elas, y ê memória delas, y ê tú conhece elas?, y ê já ouviu falar delas?
.
antes sabemos é da virgem, da pietá, da santa, inté de madre calcutá
pero çacoaimbeguira é que não
y elas cá terra do-que-pós-torna-brasil
.
não é só sobre sexo não viu
nem apenas conhecer çacoaimbeguira
.
é mesmo sobre sapatão-ser
pra desmonte-heteropatriarcado na mira




domingo, 17 de março de 2019

Qual Pornô temos como Referência? sobre As Filhas do Fogo, Educação Sexual e Repertório Imagético

imagem: divulgação


Primeiro escrevi como título para esse escrito metade no plural: quais pornôs temos como referências? Em seguida, pensei que, enquanto afirmativa de meu próprio histórico, não se enquadra no plural. E sim singular: qual pornô.


Um único. Universalizante. Portanto, gerador da regra.

O pornô da chupada, seguido da metida, avançando para a gozada (de um homem) na cara (de uma mulher). O pornô cisheterossexual. Com "super homens" machudos, roteirizando suas potências. Ângulos que, por vezes, recorta o sujeito. Ele perde a cara, perde a expressão. É um corpo que mete. E mete. E mete.

Nada que fuja à regra do roteiro pelo qual somos formada/os.

Pense agora: uma sequência de sexo. Do início ao fim. Como ele acontece? Quais corpos estão em sua mente?

Se você pensou, independente das personagens, do ato em si tal qual sequência semelhante à descrita acima. Essa pelo qual o pornô mais difundido nos povoou de imagens, taí nossa educação sexual, nosso repertório pré-formado.

Taí o pornô. E sua indústria violentadora.
E sua formação de um só roteiro: o do mete. mete. mete. e goza. Supervalorizando o cishomem-falo.

O pornô em que saites hospedeiros tem em seus campos de buscas entre as palavras mais pesquisadas: travestis, mulheres trans, lésbicas.

Num país em que mais se matam travestis e mulheres trans - numa expectativa de vida de 35 anos. Em que a lesbofobia, lesbocídio e estupros chamados corretivos são diários.

Algo parece em má formação nesse repertório de roteiros audiovisuais que nos oferecem. Nessa educação sexual que forma sujeitos para a maturidade. Que nos forma no machismo e violência contra a mulher. A partir do sexo. A partir do poder.

Já vi muitas mulheres reclamando do repertório sexual dos caras. Da mesmice roteirística de uma transa. Da sobreposição de poder.

Aqui nem falo por mim mesma; só cito azamigas. Enquanto sapatão, esse montante audiovisual jamais me animou. A falsidade de mulheres transando entre si. Transando em filmagens feitas para o prazer de homens. Feitas por homens. Estão ali para seu fetiche, para seus olhares e excitações. O encontro falsete de dois ou mais corpos de mulheres juntas.

A indústria dos homens-regra.

No entanto, feitio de regra é produção de exceção.

Num mundo pautado pelas diversidades, resistências e formas outras de atuações sempre foram narrativas do anti. Não podemos viver o perigo de uma história única. Taí todo o pós-pornô para nos fazer desaprender esse repertório histórico cravado em nossas subjetividades, em nossos corpos. Alargar possibilidades.

A questão é: sabemos o que é o pós-pornô? você que me lê agora, sabe? quando o conhecemos? como temos acesso a seu conteúdo e qual sua amplitude de divulgação e alcance?

O lance aqui certamente não é discorrer sobre o pós-pornô, mas já que o citei, fica a dica para novas pesquisas e leituras de quem cá lê. Já que não é ele o altamente difundido, o acessível simples de uma busca rápida.

No entanto, feitio de regra é produção de exceção.

As Filhas do FogoFilme lançado semana passada no Brasil. Filme pornô lésbico - como assim o chama a própria diretora, Albertina Carri - de produção-rodagem argentina lançado em circuito nacional.

Um pornô nas salas de cinema. Em cartaz com A cinco passos de vocêA vingança a sangue frioCapitã Marvel e Um amor inesperado.

A primeira questão é ser esse um filme pornô ou não.

Se há corpos que, explicitamente, se relacionam sexualmente, em cenas longas, abertas, permeantes em toda a extensão da película, então é pornô?

Mas se a construção fílmica, a estética, o encaminhamento de encontros e as formas adotadas para o fluir do sexo não são tais quais os que vemos em filmes pornôs daí-mercado, perguntamos, então é pornô?

A grande sacada do filme é justamente ser apresentado como um filme pornô. E se isso é dito pela própria diretora e as atrizes do filme, sujeitos em primeira pessoa, não o negamos tanto: é pornô. Cabe então avançarmos para traçar paralelos, contraposições e referências entre filmes pornôs e esse.

Como o próprio filme utiliza-se de metalinguagem - ou seja, é um filme pornô sobre o fazer de um filme pornô -, a personagem narradora, desejante de rodar um filme pornô, questiona:
"Se não tem truque e tem prazer, sensualidade, disponibilidade, tempo, é pornô? ou a pornografia é só a objetificação dos corpos?"

Disponibilidade e tempo. Coisas que o filme tem de sobra. De corpos-atrizes sujeitos da criação. que não foram obrigadas a fazer as cenas - como é frequente no pornô, aquém do desejo ou não das atrizes -, já com roteiros e ângulos pré-definidos, mas que elas mesmas puderam somar nessa construção.

Tempo. O tempo de tretar num bar com machos lixos. De dar um mergulho. De preparar um jantar. De dirigir pela estrada. De encontrar novas minas. De prolongas as presenças.

Tempo. Esse sujeito difícil na contemporaneidade. Que não cabe nos filmes pornôs porque ele-tempo precisa ser dinâmico. Há um espectador ali ansioso para gozar.

Ainda que As Filhas do Fogo me desanime com a quase não presença de corpos não-brancos (há tão poucos ali) e corpos não cis, me faz feliz ver corpos gordos, bem gordos, corpos em conjunto - não-monogâmicos (mais uma formação do patriarcado contratual) - corpos em práticas sexuais tidas como não-convencionais.

Abre-se o leque de repertório imagético, de modo com que possamos - quando bem queremos - retomar as imagens guardadas na memória.

Hoje eu, com quase 35 anos, construí por mim mesma meu repertório imagético erótico/sensual/sexual/excitante/corporal. Muito a partir de minhas próprias vivências, com mulheres reais, que agora seguem preenchendo meu imaginário. De criadoras na multiplicidade: trabalhos  que apresentam corpos outros; trabalhos de artes visuais, de dança, poesia, teatro etc. Há tantos... Trabalhos quase nunca de gigantesco alcance, mas trabalhos corajosos, necessários, de construção de repertórios outros, todo um arsenal de formas múltiplas, outras corpas, outras subjetividades que existam. Na contramão do que aí está posto.

No plural. Na multiplicidade. Portanto, geradores de exceções.

Se antes eu, nós, muitas, lá atrás, com nossos 17, 23, 18, 20 e poucos anos tivéssemos tido um As Filhas do Fogo que seja, enquanto acesso audiovisual amplo - no cinema, em circuito nacional; e não naquele VHS clandestino que a amiga rebelde conseguiu e não podia contar para ninguém -, quanta diferença faria.

Enquanto um tal colaborador do jornal O Estado de São Paulo disse em sua coluna que seria divertido acompanhar a distribuição do filme e que se ele estiver em mais de duas salas de cinema, seria uma grande surpresa. Pois é, meu caro, com trabalho firme das gurias da Vitrine Filmes - a distribuidora brasileira -, e um público pulsante, sobretudo de sapatãs querendo se ver representadas, não marginalizadas, não morrendo no final das novelas, não apanhando nos filmes, não tendo finais tristes, mas sim que são felizes, que riem, que dançam, que se tocam, que transam, que gozam, que gozam muito, gozam juntas e desejam com prazer a vida - As Filhas do Fogo estreia em 21 salas de diversas cidades do Brasil.

E sabe o que mais? Achamos é pouco!

Já que duas saletas, conforme visionado pelo sujeito crítico de cinema, isso é o que não está tendo.

Nós somos mais!
Mas vocês seguem teimando em nos invisibilizar.

p.s. percebam as diferenças de críticas ao filme escritas por homens cis e por mulheres/não-bináries/dissidentes. É o abismo da identificação e subjetividade.
Dirão - eles - ser análise de obra audiovisual. Afinal, são "críticos profissionais". E que estão pautando dentro dessa premissa.
Mas nós já aprendemos que não há análise artística que seja que não contenha formações subjetivas envolvidas por parte de quem analisa. Portanto, a análise não é distanciada-material-audiovisual. É, antes, identificada-necessidade-produção-de-repertório-imagético.

Com todas as ressalvas ao filme em si (que não quis muito me aprofundar), o destaque aqui é para sua importância de existência. E o quanto ganha o mundo com as discussões decorrentes dessa materialidade,  extrapolando o suporte audiovisual e cumprindo uma função socioeducativo de debates sobre o tema.

assina esse texto:
Bárbara Esmenia, sapatã, poeta, com dois livros publicados {Penetra-Fresta} (2016) y Tribadismo : mas não só - 13 poemas a la fancha + 17 gritos de abya yala (2018), editora da padê editorial (Brasil)  y da Publicar al Sur (México), curinga de Teatro das Oprimidas.

para somar com poesia:
Visibilidade Lésbica - Sempre Fomos História
http://bit.ly/2FjNfME

Desaprenderam Vocês
http://bit.ly/2TcfoZN