segunda-feira, 19 de novembro de 2018

[ da consistência do barro ]


foto: Rosilene Cordeiro

juntar argila por argila
apalpada mãos por mãos
seja formato pãozinho
seja camada sobreposta
retirada nos dedos
esgarçada nas unhas
entumescida nas pálpebras
a sair d'encostas nortistas

moldar no palma a palma
o justo sentido
entregue somente pelo encontro sete-mulheres frente-rio
num imenso território ancestral
não escapando visão que as atinja
a multiplicar na própria forja

para que
- encontro beira-rio
a curvar amazônicas
possamos nós sete
trombarmos no próprio corpo molde-mulher
esculturar ser vivente no alinhar necessário aos passados
- porque de futuros já nos basta o que aí está! -

costas a costas ser ela coluna satisfeita
entendida de seu estar norte-sul em vida
perna a coxa enrijecer musculares
conscientes dos caminhos tomados
das andanças corre feiras
sobe ladeiras
desce ruas
plexo completo a receber em cada peito
as demandas dos dias
- sejam elas de afeto,
- sejam elas de afronta -

forjar mulher desquebranto
e perceber
em seu estar pleno recém-composto
no de fronte que a vemos criatura
é
- em mútuas carícias -
nós sete mesmas

assim como cá somos
altura-feitio dos nossos
os próprios vivos sonhos


(Ilha de Cotijuba, Belém, Pará)


sexta-feira, 9 de novembro de 2018


pesa mais que articulação de chumbo
saindo em pólvora de pistola treinada
um poema em riste
responsável de seu existir no mundo

pesa mais que calibre 45 ou chimitiuelsom como quando eu dizia
em criança escutando sair palavra essa de boca de pai armado

pesa mais um poema riscado
macerado na raiva
defumado em respirofegante
assado no fôlego latejado
à cobra de reparação temporal

tinta-caneta lotadinha carregada de sangue histórico
- esse dos nossos vindos tão antes -

{ ou vindos tão ontem, como Priscila travesti assassinada, aqui tão perto donde escrevo, aos gritos do nome desse que fizeram presidente }
pesa mais que facada dada
como foi com Moa Mestre capoeira
um poema enlaçado na luta
aquilombado com os tantos
hermanados

mas
quando chega
: o tiro
: o soco
: a facada
: o estupro
: a vida ceifada

até que fica bonito
dizer poema que pesa é mais
- isso pesa -
mas quer dizer mesmo é que
poema mata é menos,
ô se menos.

já que nunca soubemos nós de poema assassino,
de poema qu'espanca lgbt's até a morte;
de poema que retirasse terras indígenas e quilombolas;
de poema queda florestamazônica;
de poema cometedor d'injúria racial;
de poema violador de mulheres.

são essas medíocres escritas.
- não cabem na substância poética –

e são essas também feitios do estado,
praticados por leis
-elas que não são poemas-

são discos rígidos indicados nas balas
são projéteis mecânicos amarrados nos bois
são fósseis comidos saídos das bíblias

uma escrita
-seja ela qualquer autodenominada poema-
não o será se em si
:substância primária:
não gritar liberdades

senão jamais conterá
peso necessário
ao
qualitativo
poético
;
ao adjetivo:

poesia.

[ foto excerto de vídeo feito por Daisy Serena ]

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

[ da coletânea Poemas para combater o fascismo ]



ninguém declarou tempos fáceis
uma risca vermelha
deslizando meio-fio do trânsito
nunca foi suficiente
para causar comoção

regressamos às casas
reconhecemos nas ruas as nossas e os nossos
e a cada instante nos perguntamos:
onde foi que estancamos o amor?

ninguém declarou tempos hábeis
o manejo de uns braços
em corrida para os amplexos
ainda é nosso treino-milícia
à guisa de qualquer tiro ao alvo

caminhamos pela cidade no mínimo em duplas
viver só sempre foi perigoso
e muitos têm nos perguntado:
quando foi que desenterramos o medo?

fato é que temos vivido pouco
tempo lazer é quase nada
desabitamos os parques
e frequentamos as ruas
sempre soubemos delas trincheiras
para acúmulo de tantas histórias

escrevo literaturas
anuncio sobrevivências
espreito nos olhos alheios
palavra surrada solidariedade
e,
todavia,
só tenho encontrado desespero

desde quando os olhos
desaprenderam os outros e as outras?

ninguém declarou tempos amáveis
o punho fechado
- mesmo tamanho de um coração -
tem pulsado a mais que esse
que ainda bate no peito

depositamos no amanhã esperanças,
entretanto,
ainda vivemos no hoje
e se há um fio de sangue dos nossos e nossas qu’es-
corre
- de quem sejam as veias
- de quem sejam as carnes

anuncia que tempo
-não fácil
-não hábil
-não amável

no face a face ao fascismo,
que vivam - sempre - as nossas
- as d i v e r s a s existências -

de quem sejam as vidas
que não se tornem as mortes

[da coletânea Poemas para combater o fascismo / completa aqui: 

e vídeo aqui: