domingo, 17 de março de 2019

Qual Pornô temos como Referência? sobre As Filhas do Fogo, Educação Sexual e Repertório Imagético

imagem: divulgação


Primeiro escrevi como título para esse escrito metade no plural: quais pornôs temos como referências? Em seguida, pensei que, enquanto afirmativa de meu próprio histórico, não se enquadra no plural. E sim singular: qual pornô.


Um único. Universalizante. Portanto, gerador da regra.

O pornô da chupada, seguido da metida, avançando para a gozada (de um homem) na cara (de uma mulher). O pornô cisheterossexual. Com "super homens" machudos, roteirizando suas potências. Ângulos que, por vezes, recorta o sujeito. Ele perde a cara, perde a expressão. É um corpo que mete. E mete. E mete.

Nada que fuja à regra do roteiro pelo qual somos formada/os.

Pense agora: uma sequência de sexo. Do início ao fim. Como ele acontece? Quais corpos estão em sua mente?

Se você pensou, independente das personagens, do ato em si tal qual sequência semelhante à descrita acima. Essa pelo qual o pornô mais difundido nos povoou de imagens, taí nossa educação sexual, nosso repertório pré-formado.

Taí o pornô. E sua indústria violentadora.
E sua formação de um só roteiro: o do mete. mete. mete. e goza. Supervalorizando o cishomem-falo.

O pornô em que saites hospedeiros tem em seus campos de buscas entre as palavras mais pesquisadas: travestis, mulheres trans, lésbicas.

Num país em que mais se matam travestis e mulheres trans - numa expectativa de vida de 35 anos. Em que a lesbofobia, lesbocídio e estupros chamados corretivos são diários.

Algo parece em má formação nesse repertório de roteiros audiovisuais que nos oferecem. Nessa educação sexual que forma sujeitos para a maturidade. Que nos forma no machismo e violência contra a mulher. A partir do sexo. A partir do poder.

Já vi muitas mulheres reclamando do repertório sexual dos caras. Da mesmice roteirística de uma transa. Da sobreposição de poder.

Aqui nem falo por mim mesma; só cito azamigas. Enquanto sapatão, esse montante audiovisual jamais me animou. A falsidade de mulheres transando entre si. Transando em filmagens feitas para o prazer de homens. Feitas por homens. Estão ali para seu fetiche, para seus olhares e excitações. O encontro falsete de dois ou mais corpos de mulheres juntas.

A indústria dos homens-regra.

No entanto, feitio de regra é produção de exceção.

Num mundo pautado pelas diversidades, resistências e formas outras de atuações sempre foram narrativas do anti. Não podemos viver o perigo de uma história única. Taí todo o pós-pornô para nos fazer desaprender esse repertório histórico cravado em nossas subjetividades, em nossos corpos. Alargar possibilidades.

A questão é: sabemos o que é o pós-pornô? você que me lê agora, sabe? quando o conhecemos? como temos acesso a seu conteúdo e qual sua amplitude de divulgação e alcance?

O lance aqui certamente não é discorrer sobre o pós-pornô, mas já que o citei, fica a dica para novas pesquisas e leituras de quem cá lê. Já que não é ele o altamente difundido, o acessível simples de uma busca rápida.

No entanto, feitio de regra é produção de exceção.

As Filhas do FogoFilme lançado semana passada no Brasil. Filme pornô lésbico - como assim o chama a própria diretora, Albertina Carri - de produção-rodagem argentina lançado em circuito nacional.

Um pornô nas salas de cinema. Em cartaz com A cinco passos de vocêA vingança a sangue frioCapitã Marvel e Um amor inesperado.

A primeira questão é ser esse um filme pornô ou não.

Se há corpos que, explicitamente, se relacionam sexualmente, em cenas longas, abertas, permeantes em toda a extensão da película, então é pornô?

Mas se a construção fílmica, a estética, o encaminhamento de encontros e as formas adotadas para o fluir do sexo não são tais quais os que vemos em filmes pornôs daí-mercado, perguntamos, então é pornô?

A grande sacada do filme é justamente ser apresentado como um filme pornô. E se isso é dito pela própria diretora e as atrizes do filme, sujeitos em primeira pessoa, não o negamos tanto: é pornô. Cabe então avançarmos para traçar paralelos, contraposições e referências entre filmes pornôs e esse.

Como o próprio filme utiliza-se de metalinguagem - ou seja, é um filme pornô sobre o fazer de um filme pornô -, a personagem narradora, desejante de rodar um filme pornô, questiona:
"Se não tem truque e tem prazer, sensualidade, disponibilidade, tempo, é pornô? ou a pornografia é só a objetificação dos corpos?"

Disponibilidade e tempo. Coisas que o filme tem de sobra. De corpos-atrizes sujeitos da criação. que não foram obrigadas a fazer as cenas - como é frequente no pornô, aquém do desejo ou não das atrizes -, já com roteiros e ângulos pré-definidos, mas que elas mesmas puderam somar nessa construção.

Tempo. O tempo de tretar num bar com machos lixos. De dar um mergulho. De preparar um jantar. De dirigir pela estrada. De encontrar novas minas. De prolongas as presenças.

Tempo. Esse sujeito difícil na contemporaneidade. Que não cabe nos filmes pornôs porque ele-tempo precisa ser dinâmico. Há um espectador ali ansioso para gozar.

Ainda que As Filhas do Fogo me desanime com a quase não presença de corpos não-brancos (há tão poucos ali) e corpos não cis, me faz feliz ver corpos gordos, bem gordos, corpos em conjunto - não-monogâmicos (mais uma formação do patriarcado contratual) - corpos em práticas sexuais tidas como não-convencionais.

Abre-se o leque de repertório imagético, de modo com que possamos - quando bem queremos - retomar as imagens guardadas na memória.

Hoje eu, com quase 35 anos, construí por mim mesma meu repertório imagético erótico/sensual/sexual/excitante/corporal. Muito a partir de minhas próprias vivências, com mulheres reais, que agora seguem preenchendo meu imaginário. De criadoras na multiplicidade: trabalhos  que apresentam corpos outros; trabalhos de artes visuais, de dança, poesia, teatro etc. Há tantos... Trabalhos quase nunca de gigantesco alcance, mas trabalhos corajosos, necessários, de construção de repertórios outros, todo um arsenal de formas múltiplas, outras corpas, outras subjetividades que existam. Na contramão do que aí está posto.

No plural. Na multiplicidade. Portanto, geradores de exceções.

Se antes eu, nós, muitas, lá atrás, com nossos 17, 23, 18, 20 e poucos anos tivéssemos tido um As Filhas do Fogo que seja, enquanto acesso audiovisual amplo - no cinema, em circuito nacional; e não naquele VHS clandestino que a amiga rebelde conseguiu e não podia contar para ninguém -, quanta diferença faria.

Enquanto um tal colaborador do jornal O Estado de São Paulo disse em sua coluna que seria divertido acompanhar a distribuição do filme e que se ele estiver em mais de duas salas de cinema, seria uma grande surpresa. Pois é, meu caro, com trabalho firme das gurias da Vitrine Filmes - a distribuidora brasileira -, e um público pulsante, sobretudo de sapatãs querendo se ver representadas, não marginalizadas, não morrendo no final das novelas, não apanhando nos filmes, não tendo finais tristes, mas sim que são felizes, que riem, que dançam, que se tocam, que transam, que gozam, que gozam muito, gozam juntas e desejam com prazer a vida - As Filhas do Fogo estreia em 21 salas de diversas cidades do Brasil.

E sabe o que mais? Achamos é pouco!

Já que duas saletas, conforme visionado pelo sujeito crítico de cinema, isso é o que não está tendo.

Nós somos mais!
Mas vocês seguem teimando em nos invisibilizar.

p.s. percebam as diferenças de críticas ao filme escritas por homens cis e por mulheres/não-bináries/dissidentes. É o abismo da identificação e subjetividade.
Dirão - eles - ser análise de obra audiovisual. Afinal, são "críticos profissionais". E que estão pautando dentro dessa premissa.
Mas nós já aprendemos que não há análise artística que seja que não contenha formações subjetivas envolvidas por parte de quem analisa. Portanto, a análise não é distanciada-material-audiovisual. É, antes, identificada-necessidade-produção-de-repertório-imagético.

Com todas as ressalvas ao filme em si (que não quis muito me aprofundar), o destaque aqui é para sua importância de existência. E o quanto ganha o mundo com as discussões decorrentes dessa materialidade,  extrapolando o suporte audiovisual e cumprindo uma função socioeducativo de debates sobre o tema.

assina esse texto:
Bárbara Esmenia, sapatã, poeta, com dois livros publicados {Penetra-Fresta} (2016) y Tribadismo : mas não só - 13 poemas a la fancha + 17 gritos de abya yala (2018), editora da padê editorial (Brasil)  y da Publicar al Sur (México), curinga de Teatro das Oprimidas.

para somar com poesia:
Visibilidade Lésbica - Sempre Fomos História
http://bit.ly/2FjNfME

Desaprenderam Vocês
http://bit.ly/2TcfoZN

2 comentários:

simonissima disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
simonissima disse...

Belo, ácido e certeiro texto!
Bjo