No dia 14 de janeiro deste ano, Ana Maria Gonçalves, em publicação em sua página no facebook (http://bit.ly/2mDsvpT), escreve que Cidinha de Campos a tinha alertado sobre uma passagem do livro Clarice,, escrito pelo estadunidense Benjamin Moser e publicado no Brasil pela Cosac Naify em 2009.
No trecho, logo no início da volumosa biografia, Moser escreve:
"Numa foto, ela aparece em pé, ao lado de Carolina Maria de Jesus, negra que escreveu um angustiante livro de memórias da pobreza brasileira, Quarto de despejo, uma das revelações literárias de 1960. Ao lado da proverbialmente linda Clarice, com a roupa sob medida e os grandes óculos que a faziam parecer uma estrela de cinema, Carolina parece tensa e fora do lugar, como se alguém tivesse arrastado a empregada doméstica de Clarice para dentro do quadro"
Além da escrita racista de um estadunidense que diz Carolina ser "negra que escreveu um angustiante livro" e não uma escritora - veja bem como as palavras simbolizam e constroem nosso imaginário -, Moser ainda diz Carolina parecer a empregada doméstica de Clarice. E tudo isso sem nem nos apresentar a foto no livro, sendo apenas justificado tal apontamento com suas palavras.
A foto é a seguinte:
A foto é a seguinte:
Acontece que o rapaz foi procurado pela revista Cult para falar sobre, no entanto não quis dar entrevista, mas deixou apontado que havia feito mudanças no texto para que deixasse "mais claro suas intenções"; mesmo não concordando que tinha sido preconceito, conforme texto publicado na Cult e compartilhado pelo portal Geledés nos mostra: http://bit.ly/2nfzJBY
Eis que semana passada, eu folheando os lançamentos numa livraria, encontro a nova edição lançada em 15/02/2017 agora pela Cia das Letras. Que bom que a edição tem índice onomástico e consigo facilmente encontrar o trecho citado.
Sim! O rapaz alterou o trecho.
E agora com as seguintes frases:
"Numa foto, Clarice aparece em pé, ao lado de Carolina Maria de Jesus, que escreveu um angustiante livro de memórias da pobreza brasileira, Quarto de despejo, uma das revelações literárias de 1960, que transformou sua autora numa das raríssimas negras a alcançar sucesso literário naquela época. Numa sociedade ainda sofrendo sob a herança de quase 400 anos de escravidão, onde a cor da pele estava fortemente vinculada à classe social, poucos adivinhariam que a loira Clarice, com a roupa sob medida e os grandes óculos escuros que a faziam parecer uma estrela de cinema, tivesse origens ainda mais miseráveis que as de Carolina".
Sim! O rapaz alterou o trecho, mas... o quê? "poucos adivinhariam que a loira Clarice (...) tivesse origens ainda mais miseráveis que as de Carolina"??
Clarice Lispector foi meu grande amor literário na adolescência. Li, além de todos os livros escritos por ela, a biografia de maior referência, a de Nádia Battella Gotlib, e mais muitos textos sobre. Numa formação literária dos chamados "cânones da literatura", cresci sem nem saber da existência de, por exemplo, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves e mais muitas outras escritoras negras que não apareciam no que chegava até mim.
Sendo meu grande amor literário, sim, sabia para lá e para cá de suas origens ucranianas, migração para o Brasil e vivência no Nordeste. Assim como sabia - e ainda sei - de sua formação em colégio hebreu aprendendo mais duas línguas: hebraico e iídiche, sua posterior formação em Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro, entre outros fatores jamais a serem comparados enquanto miseráveis quanto à condição de Carolina Maria de Jesus, moradora da favela do Canindé, mãe de três filhos, com trechos de sua realidade descritos em Quarto de Despejo, como as passagens a seguir:
"Eu ontem comi aquele macarrão do lixo com receio de morrer, porque em 1953 eu vendia ferro lá no Zinho.. Havia um pretinho bonitinho. (...) Os lixeiros haviam jogado carne no lixo. E ele escolhia uns pedaços: Disse-me:
-Leva, Carolina. Dá para comer.
Deu-me uns pedaços. Para não maguá-lo aceitei. Procurei convencê-lo a não comer aquela carne. Para comer os pães duros roídos pelos ratos. Ele disse-me que não. Que há dois dias não comia. (...) No outro dia encontraram o pretinho morto."
Entre muitos outros trechos de uma condição de um cotidiano miserável, catando papel para conseguir comprar o que comer - geralmente arroz, pão e quando muito feijão -, ver alguém comparando a origem migrante de Clarice com a de Carolina só me faz pensar em nosso torcicolo cultural de achar a "dor dos outros", no caso a dor judia/europeia, sempre mais sofrida e miserável que os resquícios de período escravocrata por terras nacionais. Não que seja um jogo de se comparar opressões, afinal, Audre Lorde afirmou que "não existe hierarquia de opressões", no entanto torna-se olhos-assustados ler tal trecho, sobretudo quando o autor anteriormente afirmara que havia feito as mudanças necessárias para a próxima edição. Parece até que o mesmo coloca a frase em tom de provocar nós que apontamos questões sobre o trecho anterior.
trecho alterado para a nova edição da biografia escrita por Benjamin Moser, publicado pela Cia das Letras foto: Grace Kelly Sodré Mendonça |
Clarice Lispector foi meu grande amor literário na adolescência. Li, além de todos os livros escritos por ela, a biografia de maior referência, a de Nádia Battella Gotlib, e mais muitos textos sobre. Numa formação literária dos chamados "cânones da literatura", cresci sem nem saber da existência de, por exemplo, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves e mais muitas outras escritoras negras que não apareciam no que chegava até mim.
Sendo meu grande amor literário, sim, sabia para lá e para cá de suas origens ucranianas, migração para o Brasil e vivência no Nordeste. Assim como sabia - e ainda sei - de sua formação em colégio hebreu aprendendo mais duas línguas: hebraico e iídiche, sua posterior formação em Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro, entre outros fatores jamais a serem comparados enquanto miseráveis quanto à condição de Carolina Maria de Jesus, moradora da favela do Canindé, mãe de três filhos, com trechos de sua realidade descritos em Quarto de Despejo, como as passagens a seguir:
"16 DE MAIO DE 1958 Eu amanheci nervosa. Porque eu queria ficar em casa, mas eu não tinha nada para comer. ... Eu não ia comer porque o pão era pouco. Será que é só eu que levo essa vida? O que posso esperar do futuro?"
"Eu ontem comi aquele macarrão do lixo com receio de morrer, porque em 1953 eu vendia ferro lá no Zinho.. Havia um pretinho bonitinho. (...) Os lixeiros haviam jogado carne no lixo. E ele escolhia uns pedaços: Disse-me:
-Leva, Carolina. Dá para comer.
Deu-me uns pedaços. Para não maguá-lo aceitei. Procurei convencê-lo a não comer aquela carne. Para comer os pães duros roídos pelos ratos. Ele disse-me que não. Que há dois dias não comia. (...) No outro dia encontraram o pretinho morto."
Entre muitos outros trechos de uma condição de um cotidiano miserável, catando papel para conseguir comprar o que comer - geralmente arroz, pão e quando muito feijão -, ver alguém comparando a origem migrante de Clarice com a de Carolina só me faz pensar em nosso torcicolo cultural de achar a "dor dos outros", no caso a dor judia/europeia, sempre mais sofrida e miserável que os resquícios de período escravocrata por terras nacionais. Não que seja um jogo de se comparar opressões, afinal, Audre Lorde afirmou que "não existe hierarquia de opressões", no entanto torna-se olhos-assustados ler tal trecho, sobretudo quando o autor anteriormente afirmara que havia feito as mudanças necessárias para a próxima edição. Parece até que o mesmo coloca a frase em tom de provocar nós que apontamos questões sobre o trecho anterior.
O livro é reeditado, o trecho alterado deste modo e lá vai mais uma enxurrada de livros vendidos, reforçando o que dita o autor.
Bárbara Esmenia é poeta, tendo o livro {Penetra-Fresta} publicado em 2016 pela padê editorial, editora que criou com Tatiana Nascimento. padê editorial é uma editora artesanal que publica fundamentalmente mulheres negras e pessoas lgbt's com o objetivo de ser voz feita palavra-registro-histórico a contrapelo das edições majoritárias.
Conheça a página: https://www.facebook.com/penetrafresta/?ref=ts&fref=ts
Acompanhe a padê editorial: https://www.facebook.com/pade.editorial/?fref=ts
Bárbara Esmenia é poeta, tendo o livro {Penetra-Fresta} publicado em 2016 pela padê editorial, editora que criou com Tatiana Nascimento. padê editorial é uma editora artesanal que publica fundamentalmente mulheres negras e pessoas lgbt's com o objetivo de ser voz feita palavra-registro-histórico a contrapelo das edições majoritárias.
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