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LISTA DE FILMES:

-Sem sol (Fra-1982), Cris Marker
-Mouchette (Fra-1966), Robert Bresson
-Pickpocket (Fra-1959), Robert Bresson
-As damas du Bois de Boulagne (Fra-1944), Robert Bresson
-O Rio (Tai-1996) - Tsai Ming-Liang
-O pecado de todos nós (1967), John Huston
-O amor é mais frio que a morte (1969), Rainer Werner Fassbinder
-As lágrimas amargas de Petra von Kant (1972), Rainer Werner Fassbinder
-Martha (1973), Rainer Werner Fassbinder
-Num ano de 13 luas (1978) - Rainer Werner Fassbinder
-Querelle (1982), Rainer Werner Fassbinder
-Lili Marlene (1980) - Rainer Werner Fassbinder
-Teorema (1968), Pier Paolo Pasolini
-Saló ou os 120 dias de Sodoma (1976), Pier Paolo Pasolini
-Santiago (2006) - João Moreira Salles
-Roma (1972), Federico Fellini
-A dama na água (2006), M. Night Shyamalan
-O céu de Lisboa (1994), Win Wenders
-Uma mulher é uma mulher (1961), Jean-Luc Godard


SEM SOL - CRIS MARKER
(Sans soleil - Fra - 1982)

A câmera filma uma mulher da Guiné-Bissau em meio à movimentação do local.

Narração do filme: (...) parece um ritual de sedução.
Eu a vejo.
Ela me viu.
Ela sabe que eu a vejo.
Ela me oferece seu olhar mas de um ângulo que parece não se dirigir a mim e, afinal, um verdadeiro olhar. Direto. Que durou 1/25 segundos.
O tempo de uma foto.

É por meio desta relação da escolha do olhar ao objeto filmado e re-ação dos seres filmados - posto que os objetos, por inamovíveis por si só que são, tornam-se passivos - que Chris Marker tece sua relação com o tempo e as experiências culturais a ele envolvidas.

Se no ensaio O narrador, Walter Benjamin desenvolve a "experiência" como empobrecimento em um contexto de guerra - uma vez que o exemplo utilizado são os soldados que retornam dos campos de batalhas e, ao contrário da conotação de terem vivido uma experiência, observa-os reduzidos ao emudecimento, calados, sem terem o que compartilhar da experiência passada -, o cineasta que tem suas cartas lidas pela narradora do filme desenvolve o seu olhar como fonte de experiência em relação de troca tanto com 'o que' ou 'quem' é filmado quanto com o público espectador.

Transitando por Japão, Guiné-Bissau, Islândia e Estados Unidos, mais precisamente São Francisco, nos locais de filmagem de Um corpo que cai, de Hitchcock, Chris Marker nos conduz a uma exposição das culturas variantes e suas narrativas, portanto mitos, porém de modo contemplativo, sem conduzir peremptoriamente o olhar de quem o assiste. Desse modo, há uma certa disfuncionalização de nosso olhar sedento de informações instantâneas constantemente.

É nesse panorama que as imagens são pinceladas como exclusão da normatização de uma estética viciada a qual muitos de nossos olhos já se acostumaram por conta de um ritmo tornado padrão no mundo contemporâneo; entenda-se o 'corre-corre' do dia-a-dia.

Aplicando resoluções como não-pessoa e não-imagem no modo de diagramar determinadas passagens do filme, Marker opta pela desconstrução visual, expondo um novo significado das teias mnemônicas recorrentes no processamento das imagens.

Bárbara Esmenia - 22/02/2012

Quem é Chris Marker?
trecho de O passageiro do tempo - Alexandre Figueirôa

Mas afinal quem é Chris Marker? Nascido em 1921, ele nunca deu ao certo pistas sobre o local onde nasceu e é conhecido por não gostar de entrevistas. Usa pseudônimos, viaja pelo mundo, coleciona fotografias, fez dezenas de documentário em película, em vídeo, para a televisão, realizou curtas e longas, colaborou com Alain Resnais em Noite e neblina, filmou países como Cuba, China, Coreia, Japão é considerado um dos inventores do filme militante e chegou a realizar dois curtas sobre o Brasil - On vous parle du Brésil e Carlos Marighella - denunciando a tortura e a perseguição aos opositores do regime militar. Em O bestiário de Chris Marker encontramos, talvez, a melhor definição para temperamento tão inquieto: "à semelhança de um caleidoscópio, Chris Marker é inatingível". Sua luta é para dissolver os dogmas, os sectarismo, algo que pode ser muito bem avaliado nos artigos que escreveu e nos projetos audiovisuais que incluem até mesmo videoclipes e trabalhos multimídia.

MOUCHETTE - ROBERT BRESSON
(Fra-1966)

Na floresta, com o olhar atento um homem aguarda o caminhar tranqüilo de um pássaro até que ele atinja uma armadilha anteriormente colocada. O fio enrola-se no pescoço do animal e quanto mais forças para tentar escapar, mais ele se enforca. O homem desenrosca o fio e, mesmo com cortes visíveis no pescoço, o pássaro pode assim voar.

Assim inicia-se Mouchette que por caminhos semelhantes a garota-título do filme trilhará. Desde as provocações escolares, as obrigações severa que o pai lhe impõe e até as implicações da vizinhança, Mouchette parece estar mesmo fadada à sofrimentos constantes.

Seu único momento de regozijo é encontrado na ludicidade bruta de um carrinho de bate-bate acompanhada de um sorriso amigável de um jovenzinho que durará somente até o momento do tapa na cara recebido por seu pai. Daí em diante, o retorno às provações é certo e assim como Bresson trabalha com os rostos plácidos de seus modelos, essa intensidade de padecimentos é imaginada num confinamento mais internalizado à pequena Mouchette, sem transparecer perceptivelmente em suas expressões.

Vemos que tanto em sua trajetória quanto no breve caminhar do pássaro do início existe a necessidade de um sofrimento, mesmo que executado por maldade em sua maioria, para o alcance de uma libertação. No caso de Mouchette, essa libertação só será possível através de sua escolha voluntária, como um abandono do sofrimento palpável para se atingir uma transcendência redentora.
Isso nos faz lembrar a citação de Susan Sontag em seu artigo 'O Estilo Espiritual dos Filmes de Bresson', de que há um tema comum nas obras do diretor que é justamente o significado da reclusão e da liberdade. Apesar do artgio ter sido escrito em 1964, sendo analisado somente até o filme 'O Processo de Joana d'Arc' (1962), podemos perceber o prosseguimento desse tema comum nesse filme seguinte já de 1966 e até mesmo no anterior de 1965, 'Ao Azar Balthazar' (ou 'A Grande Testemunha' em outra tradução). E bem provavelmente a proporção desse tema comum se mantenha ao longo dos filmes posteriores, infelizmente não inclusos na mostra do CCBB.
(escrito em 04/2007)


PICKPOCKET - ROBERT BRESSON
(Fra-1959)

Pickpocket tem mais elementos de Crime e Castigo de Dostoiévski, no qual é livremente inspirado, do que eu imaginava. Pensava eu ser apenas uma inspiração geral do crime - em Pickpocket o roubo - e suas consequências mas a obra também se percebe nos detalhes escolhidos para o filme.

Bem como Raskólnikov pratica o assassinato como exercício de uma superioridade, justificando-se com a citação de que os grandes homens da História tais como César e Napoleão foram grandes assassinos em massa e absolvidos, Michel - o batedor de carteiras - cometerá seus furtos com a consciência de uma superioridade tendo no roubo o seu exercício de poder. Tanto Raskólnikov quanto Michel quiseram ousar, experimentando-se para saber se parariam diante dos limites, mantendo-se desse modo como mais um medíocre (em contraponto aos seres superiores) ou se ultrapassariam esse extremo, arcando com as consequências.

A mãe doente, o caso de amor mal resolvido, o grande amigo camarada, o sujeito astuto jogando com o protagonista para ver se consegue extrair algo são todos elementos que se mantém em Pickpocket, além da inserção do livro de Georges Barrington dissecando os segredos de um bom furto lido por Michel em semelhança ao tratado sobre os seres superiores escrito por Raskólnikov.

O final redentor do encontro de Raskólnikov com Sonia, a garota do caso amoroso mal resolvido, em sua visita à cadeia é totalmente transposto para Pickpocket o encontro final de Michel, quando é visitado por Jeanne na prisão: as grades separarão um contato físico maior mas não prenderão os sentimentos há muito deixados de lado.

Bresson transita com todos esses elementos intensos sem querer impor uma moral ou condescendência nos fatos que deseja mostrar. Ele acompanha a narrativa com a preocupação de apresentá-la em seu estado mais puro (no sentido de limpeza virginal), bem ao modo da realização cinematográfica a que se propôs: disciplina as emoções ao mesmo tempo em que as suscita, trabalha o tempo todo com o que é 'necessário' nunca oferecendo-nos um plano gratuito, há sempre uma sombra de espiritualidade presente, sons ambientais sendo a única trilha sonora e o resgate de uma arte reflexiva em contraposição à uma arte imediata no sentido emocional.

Com esse conceito de uma reflexão em mente, podemos pensar no questionamento do esperto sujeito dirigido à Michel sobre quem é que classifica os seres superiores, ao que esse responde que é a sua própria consciência. Recebemos de Bresson os elementos para um prosseguimento reflexivo e a partir daí somos agentes livres atuando com nossa própria consciência individual, sendo deixado ao nosso encargo os comportamentos demonstrados pela obra.
(escrito em 04/2007)


AS DAMAS DU BOIS DE BOULAGNE - ROBERT BRESSON
(Fra-1944)

Um dos períodos mais férteis da cinematografia francesa vai do fim da 2° Guerra Mundial até o final dos anos 50, quando começam a surgir os primeiros títulos da nouvelle vague.

Esse período, ao contrário por exemplo da cinematografia italiana que com o pós-guerra logo se guiou para o neo-realismo, caminhará em trilhas temáticas diversas. Teremos filmes realistas como 'As Portas da Noite' (1946) de Marcel Carné, dramas de fundo social como 'A Batalha dos Trilhos' (1946) de René Clement, filmes noir como os realizados por Henri-Georges Clouzot, 'O Salário do Medo' (1953) e 'O Corvo' (1943) e até o fatalismo da vida como 'Trágico Amanhecer' (1939) e 'O Boulevard do Crime' (1945) ambos de Marcel Carné.

O segundo filme (assumido) realizado por Robert Bresson, 'As Damas do Bois de Boulogne', de 1944, inclui-se nesse período de produção francesa. Apesar de também se distinguir de um todo pela sua temática, percebe-se muitas semelhanças nas escolhas estéticas que os diretores desse período optavam. Num pensamento mais subjetivo, diria que há uma atmosfera mágica pairando sobre todos eles e de um modo mais direto, se assemelham pela preferência de escolha dos planos: médios, americanos e conjuntos em sua maioria e o tratamento fotográfico.

Apesar de ainda não trabalhar com o estilo único de realização do cinematógrafo como descobriremos nos filmes posteriores, sendo buscado por Bresson todo um aperfeiçoamento ao longo de sua carreira, podemos verificar em 'As Damas do Bois de Boulogne' todo um rigor já presente desde a escolha do texto até as produções finais: roteiro a partir de um conto inserido no romance de Denis Diderot, 'Jacques, o Fatalista', com diálogos escritos por Jean Cocteau, figurinos de duas estilistas renomadas na época, Grès e Elsa Schiaparelli e a grande atriz, tanto de cinema quanto de teatro, Maria Casarès no papel principal de Hélène.
(escrito em 04/2007)

O RIO - TSAI MING-LIANG
(Taiwan-1996)


"A vida é como um rio: sempre existe algum canto escuro, profundo e pantanoso"
O filme que abriu a mostra do CCBB, 'Robert Bresson e o Cinema Contemporâneo', na quarta-feira passada foi o taiwanês 'O Rio' dirigido por Tsai Ming-Liang.

No programa da mostra é feita a analogia com o modo fílmico de Bresson devido aos longos planos fixos, ausência de trilhas sonoras e forte presença de ruídos ambientais contidos em 'O Rio'.

Há um incômodo constante com o rapaz que adquire uma dor no pescoço logo nos primeiros momentos do filme e, entre contorcimentos padecidos, acompanharemos sua trajetória inativa devido à força maior do sentimento de dor, ficando por conta dos pais buscarem subsídios para uma necessitada sensação de alívio.

Toda essas relações 'mãe e filho' e 'pai e filho' se conduzem no melhor estilo oriental de ser: o contato se realiza mais através das ações práticas que buscam uma solução do que os diálogos que procuram conhecer as causas das mazelas e a combinação do 'o que fazer' na melhor forma de relação ocidental.

Essa religiosidade disciplinática oriental permite que se criem vidas isoladas num determinado ambiente. No caso de 'O Rio' apesar da convivência na mesma residência, os pais do garoto mantém vidas separadas cada qual em seu quarto, estabelecendo seus próprios horários e condutas externas. Assim tanto a mãe pode alimentar seus desejos sexuais com os vídeos assistidos em seu quarto, quanto o pai permite-se buscar relações pederásticas em saunas da cidade.

E será nesse lugar de satisfação e anonimato que por um momento o incômodo com o contorcimento do rapaz dará lugar à uma nova apreensão que, modificando nosso olhar, criará expectativas de um pensamento futuro ao que está ocorrendo. Ou seja: a partir do que vemos no momento, nosso questionamento se dirige para o 'o que isso pode ocasionar?', mantendo o mesmo sentimento anterior: a apreensão, porém agora com um outro estímulo motivador.
(escrito em 04/2007)


O PECADO DE TODOS NÓS - JOHN HUSTON
(Reflection in a golden eye - EUA - 1967)


Filmes com retratos militares sempre procuraram explicitar as interiorizações reprimidas por conta da rigidez moralista que carregam seus serviçais, sejam eles soldados, tenentes ou capitães.

Isso não se torna diferente com o longa realizado em 1967 por John Huston, O pecado de todos nós: num forte, os desejos são apresentados de forma sutil e expostos já em ponto de ebulição.

Os personagens são montados podendo-se dividí-los em dois grupos característicos: há os que exteriorizam todos os seus sentimentos, mantendo-se em constante movimentação, seja com o falar frenético, seja com os próprios movimentos físicos e há os que observam os fatores reproduzidos a partir de si, interiorizando todas as sensações e pontos de vista.

Partindo da descrição do segundo grupo característico, temos dois personagens de forte presença: o aspirante Williams e o major Weldon. Williams é a típica presença inusitada que encontraremos vestígios em Teorema, realizado no ano seguinte por Pasolini que levaria o assunto ao paroxismo.

Weldon é o rapaz.

Um novato.

Aquele que chegou ao forte, não se sabe de onde veio, não se sabe para onde vai, não se conhece seus sonhos e desejos, e só pela presença física e olhar já se percebe um tipo peculiar. É um personagem apresentado com poucas falas e talvez por isso não se explicita o motivo que o leva a praticar certas ações. É ele que aos poucos removerá o major do seu eixo por meio de atitudes sutis desempenhadas de forma não-intencional e por si só inconscientes.

Weldon por sua vez possui o grau máximo de hierarquia do local: é o major. Conhecemos-o pouco. Não há exteriorizações desse homem sem muitas conversas com todos que o cercam. Em momento algum há um contato sentimental ou um isolamento de Weldon com sua esposa Leonora - totalmente o oposto, é uma mulher de ação e fala. Só sabemos serem eles um casal por meio da reprodução das falas dos outros.

O mínimo que conhecemos do íntimo de Weldon é até um segredo para ele mesmo: guarda numa caixinha escondida em seu escritório, parte de seus desejos. Inclusa nessa caixa, há um ingresso para a luta de boxe que Williams deixou cair no chão.

Sabemos o que quer esse homem e com esse conhecimento justifica-se toda sua introspecção e conduta reprimida: num vale de homens fortes 'testosterásticos', explicitar seus desejos por um outro ser do mesmo sexo é totalmente asqueroso e intolerante. Porém, com as atitudes inconscientes de Williams que levam Weldon a sentir uma reciprocidade, encaminhamo-nos para o grande equívoco final.

Williams, frequentador noturno da casa de Weldon para observar sua esposa a dormir enquanto cheira suas roupas, numa noite de entrada à casa é percebido por Weldon que, na expectativa de ser ele o motivo da invasão domiciliar,entra em cataclisma, aguardando com taquicardia em seu quarto a subida do outro numa das cenas mais belas realizadas que eu já vi.

Com o desvio de Williams para o quarto de Leonora, Weldon não entende o ocorrido e dirige-se ao quarto, flagrando Williams ao pé da cama acariciando uma camisola. Weldon não pensa muito e atira fortemente no rapaz.

Weldon não atira por ter sua residência invadida.

Weldon não mata por flagrar o rapaz com sua esposa.

Weldon atira e mata por ter suas expectativas frustradas, como se com aquele tiro ele matasse o objeto de sua repressão, como se ele arrancasse seus desejos, cravando no peito um buraco, um vazio, um lugar inóspito para a habitação de sentimentos.

Não conto aqui o crime frustrando o suspense dos que ainda não assistiram ao longa pois logo no início há uma citação do livro de Carson McCullers em que o filme é baseado: "Há um forte no sul onde há alguns anos foi cometido um assassinato".

É imprescindível destacar a importância de uma resposta de Weldon dada ao discurso do amigo Morris, declarando que o serviço militar certamente consertaria seu empregado Anacleto, um tipo efeminado ligado à pintura, dança e amante da música erudita.

Em seu maior momento de exposição discursiva, Weldon se justifica dizendo que "todo aprendizado obtido às custas da normalidade é errado e não deveria trazer felicidade" e conclui "resumindo, é melhor pois é digno de honra que o sujeito que não é qualificado para isso continue ignorante ao invés de descobrir e utilizar alguém não ortodoxo".

Supostamente foi na base dessa catequização que Weldon envolveu-se com o serviço militar e alcançou o seu posto sem obter com isso a felicidade provinda de seus desejos internalizados.

(escrito em 03/2007)

O AMOR É MAIS FRIO QUE A MORTE - RAINER WERNER FASSBINDER
(Liebe ist Kälter als der Tod - ALE - 1969)



Conhecer um diretor em toda sua extensão produtiva e depois remeter-se a seus primeiros filmes cria-se um grande contraponto.

Pensar nos filmes rodados após longos anos de experiência e submetê-los a uma análise retornada aos filmes iniciais de um mesmo diretor faz com que pensemos no curso próprio de uma existência: nossas ações aos trinta e poucos anos de idade jamais se assemelham - apesar de carregar certas características e influências - às executadas em nossa juventude; tão iniciantes e inexperientes que éramos.

A essa regra não foge a experimentação inicial de Fassbinder que com seu primeiro longa metragem deixou bem claro estar se familiarizando com os elementos técnicos e narrativos de uma linguagem até então pouco conhecida para ele (Fassbinder vinha de um trabalho teatral com seu grupo Antiteater e no campo cinematográfico só havia realizado alguns curta-metragens) e como o próprio declara: "fiz um filme elitista, para mim e para meus amigos".

É isso que sentimos ao vermos O Amor é mais Frio que a Morte, um filme repleto de piadas internas não passadas para o público que acaba questionando o por quê de certas ações e elementos mostrados na tela.

Fassbinder parece querer fundir as imagens em nossa memória, prolongando longos quadros sem diálogo ou movimentação, pelo simples prazer de mostrar determinado plano enraizando-o em nós como recordações fotográficas.

A narrativa apresentada revela-se insignificante e muitas vezes sem um propósito de certas partes que destoam de um todo. As personagens não têm desígnios para com sua atitudes assim como Fassbinder não sabe muito bem o que fazer com elas, sucedendo-se, desse modo, todo o longa.

Há uma apreciação a ser destacada logo nesse filme inicial e que prossegue em todas as suas produções posteriores que é a preocupação da escolha da composição de planos: quais elementos serão enquadrados e de que forma determinado ângulo irá propor um certo significado.

Em O Amor é Mais Frio que a Morte em particular, Fassbinder se apoiará na escolha de planos médios e planos conjuntos insistindo na busca pela harmonia perfeita quando se tem mais de um personagem em cena.

Questionado numa entrevista sobre seus filmes que não gostava, Fassbinder respondeu que "os filmes meus que não gosto foram-me mais importantes do que os que gosto".

Uma analogia dessa resposta com O Amor é Mais Frio que a Morte cabe perfeitamente mesmo sem saber ao certo se Fassbinder gostava dessa produção inicial.

(escrito em 03/2007)

AS LÁGRIMAS AMARGAS DE PETRA VON KANT - RAINER WERNER FASSBINDER
(Die bitteren tranen der Petra von Kant - ALE - 1972)



"Quando o tédio triunfa sobre a beleza"
Petra von Kant

Quando o tédio triunfa sobre a beleza esgotam-se as possibilidades. Não há um porto seguro para refugiar-se. O centro de um relacionamento baseado no jogo de poder provém da beleza, não há amor para se segurar quando a beleza se esvai e o tédio constrói seu império.

É com a frase inicial que Petra von Kant justificará o fim de um casamento anterior, porém, a entrada em um novo relacionamento apoiado na contemplação do belo e na 'silhueta' levará Petra a trilhas semelhantes. Só que agora o belo a ser contemplado é Karin, jovem aspirante a modelo de 23 anos apresentada a Petra por meio de uma amiga em comum.

A figura dominante de Petra até então, começa a arrastar-se ao chão implorando reciprocidade perante Karin que, chegada com ingenuidade, passa a reinar com dominação plena.

O jogo de poder prossegue: sem que Karin peça à Petra, esta mesma cria subsídios para a satisfação da primeira, sustentando-a e inserindo-a no mundo da moda por meio de seus contatos profissionais - Petra é uma bem-sucedida estilista.

A relação cria necessidades cada vez maiores para Petra que tem sua lágrimas amargas garantidas com o anúncio da partida de Karin em regresso a seu marido. Começa aí a profunda decadência que afundará Petra por completo, perdendo toda a compostura magistral apresentada inicialmente.

Petra, como muitas, é a criatura que precisa mostrar-se bem, que esconde para si mesma todas as questões mal resolvidas em seu interior e apresenta uma figura centrada e certa de seus sentimentos, suas aflições, e o mais assustador, seus medos.

Petra criou uma persona. Uma persona moldada nas formas exigentes da sociedade em que o sentilmentalismo melodramático e a revelação de nossos desejos não encontram espaço. Mas é com a presença de Karin que todos esses mascaramentos vem à tona, desnudando Petra e revelando-a como ela mesma é e por si só se desconhece. Nessa hora brotam-se as fraquezas, os medos e a submissão.

Fassbinder criou uma personagem amargurada, esmagada pela não-realização de seus sentimentos. Contudo, apesar de toda a densidade dramática, há espaço para o cômico beirando o patético contido na vida.

A forma de utilização da presença da câmera para desenrolar as duas horas de filme passadas no mesmo ambiente - o quarto - é digna de louvações memoráveis. A exploração do espaço, os ângulos bem escolhidos, os travellings nos momentos corretos, tudo funciona para que não olhemos o local com o mesmo olhar já cansado por falta de novidades espaciais.

O tédio pode muito bem triunfar sobre a beleza mas aqui Fassbinder nos mostra que ele jamais triunfará sobre uma bela caligrafia da câmera para atingir o espectador.

(escrito em 03/2007)

MARTHA - RAINER WERNER FASSBINDER
(ALE - 1973)



Quando crescemos com uma figura paterna dominante muito forte, podemos buscar duas formas de relacionamento amoroso: ou um tipo liberal e flexível para com as ideias femininas apresentadas - escolha fruto de uma revolta com toda submissão até então tolerada -, ou um homem na mesma linha dominante e rigorosa executada anteriormente pelo pai. 

Martha
, personagem-título desse longa realizado em 1973 por Rainer Werner Fassbinder e representada magistralmente por Margit Carstensen que já havia mostrado seu grande desempenho no profundo drama realizado no ano anterior pelo mesmo diretor intitulado As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, rende-se à segunda forma de relacionamento onde, após a perda do pai, conhecerá o obscuro Helmut e com ele se casará.

Há um alívio inicial sentido por Martha em decorrência do falecimento de seu pai. Ela pode executar um ato proibido por ele: Martha agora pode fumar. E tão logo vê o corpo do patriarca jogado no chão, segue para o consulado a fim de avisar sua mãe e acende seu primeiro cigarro.

Porém essa autonomia recém conquistada despertando felicidade e um importante sentimento de liberdade para Martha lhe é dada sem que a mesma saiba ao certo como utilizá-la. É como se lhe fosse retirada uma corda que até o momento a mantinha presa porém dava-lhe um porto seguro, domesticando seus limites.

No primeiro encontro casual de Martha com seu futuro esposo Helmut, a câmera executa um dos movimentos mais belos e bem realizados cinematograficamente. Essa câmera irá girar ao redor dos personagens enlaçando-os para simbolizar a futura união. Um movimento destacado na obra de Fassbinder que quase sempre optou por uma câmera distanciada apresentando os fatos de maneira passiva, aqui ela toma as rédeas e assume uma atitude, liderando a apresentação do encontro.

O primeiro encontro marcado do casal acontecerá num parque de diversões onde Helmut se extasiará vendo Martha em pânico para entrar na montanha russa. Após o trajeto desesperador para Martha no brinquedo, ela chora e Helmut pede-a em casamento. Começam aí os primeiros indícios de prazer de Helmut pelo sofrimento de Martha, como se a fragilidade dela, demonstrada por meio do ato de chorar, fizesse com que ele se apaixonasse. Um sentimento de superioridade e dominação para com o outro ser que chora, que não possui nenhuma proteção e pode fazer dele um objeto de veneração.

Essa obsessão de Helmut para com o padecimento de Martha só criará situações de maior estranheza. Desde as mordidas no pescoço, o sexo com ela ardendo das queimaduras do sol até o pedido de demissão no serviço dela e o extremo de pedir para que Martha não saia mais de casa.

Martha, a principio, assusta-se e tem a rejeição inicial com os pedidos, porém, como se tomasse consciência da necessidade de aceitação do que lhe é proposto para que se mantenha o jogo de poder estabelecido, Martha acaba cedendo, sucumbindo para que Helmut possa triunfar.

Martha tem em si o desejo de sobrepor-se para a não aceitação dessas imposições de Helmut mas não sabe como agir para que isso venha à tona e, em sua decorrência, ela cede.

Partindo para uma linha de representação anti-naturalista, Fassbinder se prolongará em seus planos, enquadrando quase sempre os personagens em composições laterais, raramente centrados, juntamente com um outro elemento de cena, podendo ser escolhido a direção do olhar ou o seu revezamento diante de cenas mais longas. Assim como em todos os seus outros filmes, em Martha a presença de espelhos é marcantemente grande dando uma relação de jogo com os diálogos dos personagens, exercendo "uma outra verdade ao ator, uma outra dinâmica" como melhor explicaria o próprio Fassbinder.

(escrito em 03/2007)

NUM ANO DE 13 LUAS - RAINER WERNER FASSBINDER
(In einem Jahr mit 13 monden - ALE-1978)

































































QUERELLE - RAINER WERNER FASSBINDER
(ALE-1982)



















'Num Ano de 13 Luas' é um filme que acabei vendo de imprevisto. No dia de sua exibição era para eu estar em outro lugar mas sobrou tempo e pensei: 'óquei, vamos dar uma olhada nesse filme' e fui sem muitas expectativas. E bem como todos os clichês inesperados da vida, foi um filme que me surpreendeu grandemente, talvez um pouco por eu não ter criado muitas expectativas e muito pela beleza da criação, a sensibilidade das atitudes e extremos ressaltados quando somos movidos por um desejo maior. 


O filme inicia-se explicando que as pessoas nascidas em anos de 13 luas são mais sensíveis que o natural e quando vem um outro ano com 13 luas essas pessoas tendem a sofrerem muito. No século XX houve seis anos com 13 luas que são os anos 8, 29, 43, 57, 78 e 92. 

A história se passa no ano de 1978 e a personagem nasceu em 1943, portanto fruto de um ano com 13 luas. Essa personagem é 
Elvira, uma travesti, antigamente Erwin, com constantes dores de cabeça e com a única necessidade de ser amada de verdade para poder ter um motivo para viver. Porém, como a vida é sempre dura, após o abandono de Christoph - o homem que vivia com ela - Elvira trilhará um longo trajeto em busca de um novo motivo existencial, indo ao encontro de seu passado incógnito e se propondo a retomar sua antiga profissão como açougueiro.


 de açougueiro.











Desconhecer nosso passado pode poupar-nos de grandes decepções mas também faz com que não saibamos quais as influências que nos levaram a determinados caminhos que chegam até o nosso modo de vida atual. Ter a opção de possuir esse conhecimento é um grande arriscar. Elvira se propôs a isso, optando pelo incerto arriscar, indo em busca de sua infância incógnita passada num orfanato por catorze anos.






Essa cena irá, por meio de uma freira, contar toda a história de Erwin, desde o abandono da mãe, passando pelo carinho das freiras até a tentativa de adoção por um casal - tentativa essa frustrada devido à negação da mãe biológica, sendo esse o maior impacto de sua adolescência, transformando Erwin num menino triste e cada vez mais propenso à solidão. Provavelmente isso tenha acontecido com Erwin aos 14 anos, sendo o ano de 1957 também um ano com 13 luas.






Para não se deixar levar pela densidade dramática a que esse monólogo da freira possa causar, Fassbinder opta nessa cena por uma representação totalmente deslocada de uma situação normal, distanciando nosso sentimentalismo e fixando-nos na própria história contada. Tem-se assim, a freira caminhando pelo corredor e jardim do orfanato enquanto Zora, amiga de Elvira, está parada num dos cantos e no retorno da câmera para mostrar Elvira após um longo tempo, tem-se a própria moça jogada ao chão. Uma cena longa que com essa ruptura de realismo consegue manter sua apreensão utilizando-se de um arriscar consciente do próprio Fassbinder.






Há um outro momento também belíssimo que é passado num banheiro onde Elvira passou a noite e lá chega um sujeito preparando uma corda para se enforcar. Esse sujeito discursará sobre o direito de morrer lembrando muito a influência de Schopenhauer em Fassbinder onde a negação da vida se opõe à vontade de viver. Elvira, sem opinar sobre a decisão do sujeito, fará um comentário válido dizendo que "a vida seria mais triste sem melancolia". Assim o sujeito pode concretizar seu ato desejado.






O trabalho com as artes plásticas se faz bem presente nesse filme onde é possível observar uma maior geometrização dos elementos cênicos, angulações, deformações do espaço e pinceladas cromáticas resultando num maior apuro com o tratamento fotográfico.


Pensando que a exteriorização de nossos sentimentos possa nos aliviar de todas as angústias, acarretando um grande desabafo, para Elvira isso não é diferente onde ao ir ao encontro de um jornalista que a entrevistou num tempo passado, irá expor à ele que "quando você me entrevistou, eu não senti dores de cabeça".


Mas ainda há muito mais a ser latejado em sua cabeça já que nem sempre temos a oportunidade (entenda-se 'um ouvinte') para contarmos nossas aflições.

(escrito em 03/2007)
















Último filme realizado por Fassbinder antes de sua morte, Querelle (baseado no romance Querelle de Brest, de Jean Genet) carrega uma nova experimentação, bem diversa da realizada até então pelo diretor.

Há aqui um rigor estético, uma busca pela estilização da imagem trabalhada com cenários perceptivelmente artificiais, uma movimentação dos personagens distanciada de uma identificação cotidiana e a criação de se estar trabalhando com imaginários - pensando-se no sentido de alegorias a que nosso repertório imaginativo possa nos remeter.


Fassbinder mexe com um universo totalmente masculino, estando em jogo toda uma sensualidade e sexualidade exaltadas inclusas nos tipos criados - há o marinheiro, o policial, o tenente, o dono do bar...
Estereótipos típicos de um mundo homossexual masculino.


Com tanta testosterona reinante, a única inclusão feminina na história - a esposa do dono do bar, Lysiane - não encontra espaços para se encaixar nesse cotidiano, sendo personagem secundária de sua própria vivência, jogada à margem, à procura de atenção. Não é por acaso que ela, por ter uma visão afastada do mundo que se criou ao seu redor, pode com toda autoridade cantar que 'todo homem mata aquilo que ama'.

Mata talvez por não saber lidar com esse sentimento já que esses são homens em que a força se concentra nas relações sexuais; são homens que se comunicam com o sub-texto fálico em mente sendo o mote propulsor baseado na apreciação física em jogo.

Talvez devido à essa artificialidade das relações é que Fassbinder quis inserí-los num cenário claramente visível em seu estado de 'montado', com cores fortes berrando em nossos olhos e os personagens discursando em posturas posadas, inimaginadas como sendo naturais daqueles seres.















(escrito em 03/2007)


LILI MARLENE - RAINER WERNER FASSBINDER
(ALE-1980)




"Não sei nada sobre isso. Eu só canto uma canção"
Willie Andersen


Lili Marlene é o nome da canção. A cantora é Willie Andersen e ela realmente não tem ideia em que está se envolvendo ao aceitar algumas propostas que a fazem prosseguir com sua música.
Willie é uma ariana pura que tem um relacionamento apaixonante com Robert Mendelssohn, um judeu. Somente isso já dá todo o estopim para quase todos os filmes que por trás dessa história de amor exponha o período alemão nazista da 2° Guerra Mundial. Só que Willie, ao dar a luz à Lili Marlene, precisará responder pelos atos cometidos por sua cria.
Cria esta que não é pouca coisa: simplesmente se transformará no hino de amor 'à amada' nazista, a canção projetada pelo alto escalão, a canção ouvida pelos soldados no momento da batalha, ao estarem nos campos lembrando das pessoas amadas.
Questionada sobre o seu envolvimento com os chefes nazistas, Willie rebaterá dizendo que "nem sempre se pode escolher quando se trata de sobreviver" e é esse o pensamento justo que pairava sobre a mente das pessoas que faziam determinada escolha nesse período. Não precisamos de heroísmos para atestar a sobrevivência. Brecht já dizia que "pobre do país que precisa de heróis". Somente estando no lugar da pessoa que optou por certa atitude é que se pode contestar sua escolha.
O pai de Robert, preocupado com o prosseguimento do relacionamento do filho com Willie, dirá "não temos nada contra, vocês apenas se conheceram na época errada". Enquanto houverem limites territoriais e étnicos não haverá lugar para o triunfo do amor. Percebe-se aqui que realmente os fins são justificados em decorrência dos meios: não há escapatória.
Fassbinder apresenta essas relações sem maniqueísmos, cada um tem sua influência no meio em que vive e é influenciado pelos acontecimentos que decorrem desse meio. Total dialética.
Lili Marlene foi realizado em 1980 e já aparece com sendo um pré-anúncio do que viria a ser produzido no ao ano seguinte: a trilogia do pós-guerra alemão formada por O Casamento de Maria Braun, Lola e O Desespero de Veronika Voss, mas Lili Marlene poderia muito bem ser inclusa nessa iniciativa por carregar o memo apelo motivador do que viria a seguir.
(escrito em 03/2007)


TEOREMA - PIER PAOLO PASOLINI (1968)















Teorema em minha vida sempre teve uma grande importância por estar diretamente ligado ao meu descobrimento do cinema.
Meu primeiro emprego, em janeiro de 2004, foi justamente numa vídeo locadora e até então meus maiores conhecimentos se davam na área teatral, sendo os filmes reduzidos ao mero olhar de espectadora das 'grandes' estréias.
Com a entrada nesse serviço, decidi buscar na prateleira intitulada 'Arte', os filmes indicados no ano anterior por um grande professor de cênicas da Unesp-SP, Alexandre Mate
Teorema sempre foi por ele muito falado, então foi logo um dos primeiros dvd's a serem levados para casa, aquecendo o aparelho de dvd recém comprado.
Lembro-me que o choque foi estarrecedor: eu olhava cada imagem, cada silêncio, cada rosto em pré-estágio ao grito daqueles personagens sufocados, sentindo por dentro sensações novas em relação às até então sentidas com os filmes vistos anteriormente.
Com o final do filme, ele não se esgotou rapidamente para mim como uma mera diversão. Ele permaneceu em minha mente por um grande período de reflexão dos questionamentos e estética propostos.
Pude com Teorema entender a diferenciação entre um cinema fácil e costumeiro e um cinema proposto a se pensar tanto nos assuntos tratados quanto na própria linguagem cinematográfica (linguagem esta, entendida por mim só posteriormente, claro!).
Assim mantenho até hoje Teorema em seu posto de grande importância em minha vida. Toda vez que o revejo, sinto sempre uma apreensão semelhante à sentida na primeira vez e cada vez mais somada à novos elementos de acordo com o avançar óbvio e natural de minha idade.

(escrito em 05/2007)


SALÓ OU OS 120 DIAS DE SODOMA - PIER PAOLO PASOLINI (1976)




Após participações ativas na política italiana, sofrendo grandes decepções, Pasolini reforça um pensamento que o rodeava nos últimos anos levando-o à uma descrença a respeito do homem moderno italiano.



É esse o ser que já foi forte em suas convicções e após o processo fascistizante, tem-se um novo homem que é esse estacionado, cada vez mais produto dos meios de consumo. Pasolini denomina esses sujeitos como 'tragicamente monstruosos' que, transpostos para o filme, são a personificação fascista reinante no período de 1944/45. Aqui mais especificamente a República de Saló onde, afastado totalmente da monarquia convivida anteriormente, tudo será permitido ao poder fascista. Porém, como o próprio Pasolini classifica, há tanto uma 'deformação da verdade histórica' ao retratar Saló (obviamente) e uma 'deformação da verdade literária', provinda da inspiração livre na obra de Sade.
Pasolini não quer a verossimilhança com os elementos de inspiração. Ele prefere a desmitificação dos fatos e a crueza de suas apresentações, sem intenção alguma de agradar a quem possa assistir.
O sexo, assim como na Trilogia da Vida realizada anteriormente e formada por DecameronOs Contos de Canterbury e As Mil e Uma Noites é o elo propulsor das ações, só que em Saló não é o sexo digamos que 'bem resolvido'. Tem-se agora o sexo mesclado a muitos outros elementos, intensificando a virulência dos desejos brutais.
Porém esse sexo também não é atrativo para quem observa. São somente seres reduzidos a corpos que por sua vez se tornam coisas, objetos passíveis de manipulação bem ao modo de um usufruir do poder, transformando o homem em mercadoria que dessa forma pode se submeter a todo tipo de tratamento.
Aproveitando-se de suas autoridades, seres fascistas aprisionam jovens em uma mansão a fim de utilizá-los como fonte de prazer, masoquismo e morte que serão divididos no filme por três ciclos: o das manias ou paixões, o da merda e o do sangue respectivamente. Dentro da mansão uma única regra: tudo é permitido, menos as relações 'normais', que são pagas com a morte.
Ouvimos frases como 'Nós fascistas somos verdadeiros anarquistas' ou 'Sem derramamento de sangue não há perdão', servindo para a justificação de todas as perversões e violências desses seres que só funcionam em conjunto para a efetivação de seus desejos. Neles há um coletivo dominante que não os permitem serem seres únicos, podendo exercitar essas desmedidas somente por meio da comunhão consentida e até, por que não?, consagrada de acordo com seus parâmetros.
(escrito em 05/2007)

ROMA - FEDERICO FELLINI
(ITA-1972)



Fellini é mesmo um ponto de mutacão. Eis que em 1972, após realizar obras-primas como 8 1/2 e A Doce Vida, e passados longos anos pós-surgimento com A Estrada da Vida e Noites de Cabíria, ele mostra-nos com o que há de mais 'singelo' (com aspas, claro) em seu modo de filmar: sem brilhantismo no roteiro, sem um aprofundamento psíquico dos personagens, trilha sonora (composta por Nino Rota) conturbada e cheia de bruitismo chegando até mesmo a violentar audições mais sensíveis e o básico de não se revelar uma história concreta.

Não. Não há uma única história mostrada, visto que a personagem principal fica por conta da própria cidade: Roma é o que liga os fatos.

Há um pré-anúncio de figuras tipificadas que seriam retomadas em Amarcord lancado logo no ano seguinte, 1973. Essas figuras são os elementos mais agradáveis do longa com um destrinchamento intrínseco de caracterizacão ocasionando, em sua maioria, nos momentos mais engraçados do filme, por mais que essas personagens sejam passageiras, sem maiores identificações.

Ao querer ir fundo em suas cenas, Fellini chega a exaustar certo público em Roma por seus excessos, prolongando passagens já esgotadas há tempo, desgastando sua plateia que procura manter-se firme aguardando o fim de um quadro para o início de outro na esperança de renovação.

Só mesmo um italiano conhecedor de Roma pode ter essa autoridade de fanfarrar com a cidade de forma tão íntima, como se Roma fosse para Fellini sua cidade natal.
Resta para nós paulistanos a 'boa vista' que enxergamos na tela obtendo até uma certa identificação com nossa grande metrópole baguncada e nostálgica.

(escrito em 02/2007)

A DAMA NA ÁGUA - M. NIGHT SHYAMALAN
(Lady in the water - EUA - 2006)



Para se envolver em uma fábula é preciso remeter-se à infancia e acreditar.
É a isso que se propõe o último filme de M. Night Shyamalan, colocando-nos num enredo fabulístico.

Da piscina de um conjunto habitacional surge um ser feminino identificado como narf, estabelecendo a priori um vínculo com o zelador dos condomínios, o aparente gago Cleveland Heep.
A narf conta que veio do Mundo Azul e diz correr perigo pois precisa voltar, mas um ser maligno, um scrunt, quer liquidá-la. A partir desse impulso central é traçada toda a fábula (baseada numa história infantil do próprio diretor contada a seus filhos quando crianças e recém publicada em livro) de apresentacão dos novos seres e mundos de uma forma madura onde os personagens (habitantes dos condomínios) principiam o contato com a narf de uma forma cotidiana sem a apreensão de se estar junto a um ser incomum.

Por mais que a história seja uma fábula irreal, Shyamalan inseri, como já foi caracterizado em seus filmes anteriores, questões da sociedade atual. É possível notar um maior conhecimento de fábulas partindo de uma personagem japonesa que conta a história das narfs em paralelo com a riqueza cultural oriental repleta de tradições. É lícito também o esdrúxulo tratamento com o personagem crítico de cinema (talvez uma rebatida para tudo que já teve que ler e ouvir sobre seus filmes anteriores) e até mesmo no livro em andamento que terá o poder de mudar o mundo pela leitura de uma criança que se tornará líder mundial, ressuscitando nesse ponto os grandes ideais antigos de mobilização em massa por vezes esquecidos na atual sociedade.

Uma das passagens mais bem apresentada mostra-nos uma conversa entre a narf e um dos condôminos, representado pelo próprio Shyamalan. Ambientada no banheiro, temos a narf sentada no chão do box e Shyamalan ao lado sem um contato visual com ela, segurando o livro que está escrevendo. Shyamalan pergunta qual será seu futuro e a narf responde que vê seu livro publicado com sucesso, passado um tempo chega às mãos de uma criança que o le com veemência, cresce com as ideias do livro incrustadas em sua mente e torna-se uma grande líder mundial, citando sempre a referência do livro que transformou sua existência. Com essa enorme influencia global, grupos opostos ao líder buscarão Shyamalan e o assassinarão.

A câmera apresenta-nos um plano superior enquadrando a cabeça de Shyamalan e o livro em suas pernas com suas mãos apoiadas sobre ele. Há um momento de intensa reflexão do personagem que sabe ter em suas mãos a decisão de seu futuro: ou ele publica a obra, causando a grande e necessária revolução mundial tendo como desfecho sua morte em funcão disso, ou ele não a publica e ganha seu prolongamento de vida. Sua expressão deixa claro que a publicacão é certa.

''Que tipo de indivíduo seria arrogante a ponto de achar que conheceria a intenção de outra pessoa?''

Essa é a pergunta que um dos personagens lança referindo-se à prepotencia do crítico de cinema que numa cena com tendências bizarras é morto por um scrunt.

É significativa a escolha de ser uma crianca o Simbolista ou Intérprete da fábula, fazendo com que mantenhamo-nos crentes da prevalência da pureza da mesma forma em que essa interpretacão descobre-se mais tarde ser a errada: a pureza nem sempre é o correto.

Valendo-se de uma boa equipe, tudo funciona: operador de camera hábil em sua função, efeitos especiais na medida certa, trilha sonora bem pontuada, fotografia de uma beleza notável, atores que se firmam em seus papéis, tudo para intensificar a genialidade do roteiro, hiperbolizando as criações de Shyamalan como as mais significativas na produção atual. Ainda mais sabendo ser um produto de Hollywood feito de forma industrial mas que consegue quebrar esse conceito maquinário, transformando-se no belo.

Ver A Dama na Água fez-me acreditar que nem tudo está perdido nessa contemporaneidade cinematográfica. Ainda há muito para surgir boiando em meio a todo esse lamaçal.

(escrito em 02/2007)

O CÉU DE LISBOA - WIN WENDERS
(ALE/PORT-1994)

Pensar na cinegrafia de Win Wenders é pensar numa inconstância que mantém-nos alerta a cada novo filme sem se ter uma ideia do que de fato esperar. -No meio de filmes mais conceituados, pode-se encontrar o bem-humorado O Céu de Lisboa, filme um tanto leve e agradável.

Em paralelo com a espera de GODOT, o principal personagem Winter se desloca da Alemanha para Portugal afim de encontrar seu amigo alemão Friederich. Este, chamou Winter justamente para fazer a sonoplastia de seu novo filme - o que dão as melhores passagens do longa. Deste modo podemos nos deliciar com Winter (senhor Inverno, como chamam as crianças portuguesas) criando sons a partir de objetos e passando por amplas paisagens portuguesas captando ruídos locais.

Sensação marcante ao ver o filme é o arrepio proporcionado ao ouvir a pureza das canções do grupo português MADREDEUS, onde, num momento óbvio, há a jogada de mínima paixão entre Winter e a vocalista do grupo, a bela Tereza. O conjunto toma a forma de descompromisso temporal, vivendo somente por meio de sua criação como única função vital.

Já que o cenário se deslancha em Portugal, nada mais justo que invocar a única referência mais conhecida em cinematografia por lá: Manoel de Oliveira, que numa rápida cena aparece chaplianamente parlapatando por uma rua. -Do mais ficam mesmo as sensações sentidas ao longo do filme sem muitas novidades tanto em seu roteiro como no modo de filmar e em suas questões técnicas. 

(escrito em 01/2007)


UMA MULHER É UMA MULHER - JEAN LUC GODARD
(FRA-1961)



Após a passagem do tão repercutido ano de 1959 com o lançamento dos primeiros filmes de Chabrol, Rohmer, Resnais, Truffaut e o próprio Godard, rompendo com 'as regras clássicas' do modo de se fazer cinema na França até então, era preciso prosseguir.
Em 1960, Truffaut lançará Atirem no Pianista, baseado no romance policial de David Goodis e Godard filmará O Pequeno Soldado mas esse ficará preso na censura e será preciso partir para outro. Dessa forma, Godard realiza Uma Mulher É Uma Mulher em 1961, mesmo ano de lançamento de O Ano Passado em Marienbad, de Resnais.
Godard tenderá nesse filme para o que ele chama de 'neorrealismo musical'. Sim, ele sabe e consente ser este um grande paradoxo mas certamente é nesse fato que se dá todo o diferencial buscado.
O neorrealismo nesse caso pode se concretizar mais por uma ideia de cinema próxima ao realizado na Itália na segunda metade da década de 40 e início da de 50, levando em conta as semelhanças de produção: baixos recursos, abandono dos estúdios usando os cenários naturais e um estilo mais solto de se filmar. Mas isso encontraremos em todos os filmes da chamada Nouvelle Vague. O que Godard cita aqui é mais a ideia mesmo da palavra 'neorrealismo', do que a semelhança de determinado genêro cinematográfico.
Porém com a entrada do 'musical', a mixagem do primeiro elemento já não cabe mais com tanto cartesianismo: há uma remodelagem estética, daí o seu paradoxo. Só que até mesmo esse musical não é realizado com semelhança aos que já estávamos habituados/as a ver. Continua sendo apenas uma ideia, uma tentativa.
Tem-se a câmera determinante nesse caso pois ao escolher um certo enquadramento ou movimento, ela está inserindo ou excluindo trechos musicais de acordo com a imagem que se apresenta. A música só se realiza por meio da escolha primeira do que estamos a ver, sendo desse modo em função dela (a imagem).
Para se experimentar por todas essas tendências, Godard continua a se valer de uma trama bem simples, podendo ser contada a qualquer um com facilidade: Angela (Anna Karina) quer ter um filho. Seu namorado Emile (Jean-Claude Brialy) prefere adiar a ideia. Angela resolve convidar o amigo de EmilePaul (Jean-Paul Belmondo), para concretizar seu desejo.
Onde a forma supera o conteúdo!


(escrito em 07/2007)